Raphael Nery

A ceiva vermelha

 

A lembrança da floresta é boa. Não consigo esquecer a luta com os outros, só pela réstia de luz, subíamos tanto, o perigo de cair era iminente. Mas num vislumbre aqui estou, decapitado, desnudado e flagelado. Transformaram-me em bloco, em dois na verdade. Quanta escuridão nessa luta braçal de homens, eu fico caído à beira, esperando o “dia do levantamento”, é assim que as outras árvores chamam. Quando cheguei já havia muitas por aqui, algumas contavam, rindo ou chorando, as atrocidades humanas que iam do corte à carbonização! Absurdo! Mãe me disse que nós oferecíamos respiração a esta gente, ela ouviu uma vez antes de ir, também… Percebo que estou aqui só cumprindo o destino. Ainda que tentasse fugir, como tentei, pro céu não havia saída, os pés continuavam soterrados. Não consigo entender por que não voamos que nem o Flu. Ele constituiu até uma família em meus galhos, gostei do tempo que passaram comigo, foi surpreendente ver os pequeninhos voarem também, mas eu continuei lá. E continuo aqui. Que destino avassalador! Que missão desgraçada de viver, oferecer e morrer. Que vocação de tornar-se entulho, móvel e carroça, que miséria!


Ainda posso fugir! Quem me dera receber abraço daquele operário… Ainda que para me desnudar mais. Eu vejo como ele trata as outras árvores por aqui, todas lhe fitam os olhos! Uma vez, por um rápido momento, até deixei de odiar os homens quando ele passou e me tocou, mas escolheu outra, levou a terceira da última fileira… Dizem que ela tornou-se cadeira ou mesa, algo assim, não sei bem o que é, mas deve ser bom, afinal, foi José quem fez. Ele continuou passando, dia após dia, e nunca me carregou. Aos poucos a terra foi tomando meu corpo e com o tempo todas as outras árvores foram levadas, na escuridão do canto em Belém os anos se passaram e com eles a percepção de vida que um dia existiu aqui. Numa tarde senti um forte impulso, acordei do sono com um grito de dor. Era um jovem caído, tropeçou em mim e quis descontar a burrice com uma machadinha que carregava. Gritei também, mas inaudível. Nada adiantava, anos naquele lugar me faziam lembrar constantemente do verde, do canto e da bagunça dos pássaros. Entrei em transe e durante o súbito de emoções fui levado a outra cidade, senti pelo balançar de trotes do cavalo na carroça. Eram homens revestidos de aço, cingidos de lâminas e panos, aquilo só poderia ser sonho! Mas não era, estava sendo liberto de Belém, aquele lugar vazio que eu vivia há anos, conhecendo só um metro quadrado. E José! Eu nunca mais veria José! Nem teria a oportunidade de ser flagelado em suas mãos, que destino desgraçado! Sei que este que me transportava não era alguém bom, os metais que portava não me traziam boas recordações, ainda que José também utilizasse, não me senti bem. Quando chegamos, o lugar dava ao céu! Pareciam árvores frondosas, mas marrons. Quando não responderam as minhas saudações percebi que eram construções, enormes construções. Alguns homens me olhavam amedrontados, nunca quis botar medo em ninguém, entretanto, de repente me senti poderoso, seria a companhia do humano de aço? Só recebi a resposta quando a carroça parou, a árvore dela nem falava mais, e começava o medo de me tornar aquilo também, um mudo ser!


Cheguei a um espelho vivo. Existiam inúmeras árvores com os mesmos cortes que eu. Estavam quietas esperando algo, parecia que tinham sido flageladas há anos. Tentei conversar com todas, calaram-se. Na noite, acordei com alguém me chamando, estranhei o fato mas lancei um seco: “:Olá!”… “:-Você está me vendo” sussurrou. “:Não estou, porque cochicha?” respondi com estranhamento. “:-Elas não podem nos ouvir, por isso não falei contigo durante o dia”. “Porque não podem ouvir?”, exclamei em alta voz. “Shhhhhhhh”, ele respondeu enquanto via se alguma acordara e revelou “:- Fiquei muito feliz quando você chegou, apesar de te achar muito pálido… Aqui não falamos muito, essas outras perderam as esperanças. Mas eu ainda creio, vou ter sentido!”. Durante o diálogo, alguns pensamentos assolavam meu consciente. As vozes dos meus amigos, com o som da floresta, se juntavam e formavam um belo canto, por pouco não escutei a resposta do… “:- Qual o seu nome?” perguntei. “É Galf, prazer! E o seu?”, “:-O meu é...”, não sabia o que responder. Nunca pensei que tivesse que ter também um nome. Achei que somente os outros teriam. Acabei respondendo que era “José”, embora com muito remorso. E fui sendo chamado de “Zé” noite após noite, por Galf no pátio. Certa vez uma das árvores acordou quando conversávamos, prometeu colocar-nos por cima dos outros. Dizia que seríamos pegos primeiro, esse era nosso castigo. Depois entendi que era o que Galf queria. Ele acabou sendo levado, e no abraço do homem de aço iam gotas ao chão, chorando lançava pela última vez seu olhar para mim. Foi um bom amigo. E mesmo sabendo que tinha me usado para alcançar seu objetivo, fiquei feliz, às vezes também consegui ser importante, ajudando alguém. Na tarde do dia seguinte também me levaram. Nunca pensei viver tão grande agonia, aquele monte de árvores nuas já fazia parte de mim. Eu não aguentaria mais ter que separar-me das novas raízes, sempre que nasciam alguém cortava. Foi uma saída impactante. Estendia os poucos galhos para as outras madeiras, sem nenhuma retribuindo o feito. Na caminhada, eu nos braços do homem de aço, percebi que eram vários e que se chamavam “soldados”, um nome interessante que para usar, e deixar o bom José em paz, entretanto, de cabeça para baixo, não pensei em outra coisa a não ser o “meu novo destino”. De repente, um tom avermelhado inundava o chão perto das sandálias do soldado. Na passagem pelos corredores, vi que saíam de perto do Galf, que agora estava no meio de um pátio sendo assistido por muitos homens. Estava acorrentado e preso a um outro homem nu. Que cena assustadora! Os de aço seguravam outros aços e ceifavam a coluna desse nu com ceiva vermelha. Se ele não estivesse gritando, sentiria que aquilo era um espetáculo, foram inúmeras cores, e no meio de tudo, Galf, extremamente aflito e feliz. Havia encontrado sentido. Todavia, não consegui entender tudo aquilo. Até duas mulheres choravam, uma mais nova e outra mais velha, com elas um jovem. Foi um absurdo, perdendo-os de vista não parava de pensar se aquele homem também fora cortado para transformar-se em bloco, ou móvel.


Em meio ao clímax, entendi que era o final. Havia uma porta grande, cercada de povos e soldados com tantos gritos que por pouco não entrei em transe novamente, lembrando da floresta. Reparei de novo algumas mulheres chorando, o que estava acontecendo? Olhavam para mim. Suas lágrimas escorreram ainda mais quando dois homens de aço pegaram meu corpo, partido em dois, e começaram a bater enfiando pregos, queriam que eu virasse um. Que ideia ótima! Entretanto, não era bom. A dor vinha a cada batida e as lágrimas
corriam nas bochechas das mulheres a cada centímetro do prego dentro. Por que choravam por mim? Havia eu, feito algo por elas? Mas inaudível, o barulho aumentou. A multidão saia do pátio e vinha em minha direção. Formaram uma fila dos dois lados, com espaço no meio, tão grande que não consegui percorrer o olhar até o final. Por último saiu aquele nu, agora com um aspecto horrendo, nem parecia mais homem, estava sendo empurrado e xingado pelos soldados. Quando se aproximou e me tocou senti uma paz extraordinária, seria José encostando seus dedos na minha pele recém flagelada? Eu reconheceria aquele toque! Sem sombra de dúvidas era único. Mas não era José. Chamavam ele de “Jesus”, e quando me abraçou fui levado. Mas era diferente, senti um peso redobrado sobre minha madeira e ainda assim, levado com tanto carinho! Percebi que lhe causava sofrimento, tentei gritar para que ajudassem esse pobre homem, inaudível calei-me. Me levava decidido, mesmo acabrunhado pelas dores que só multiplicavam, era uma decisão forte. Caiu três vezes e parou constantemente para socorrer aquelas que viu chorar. Choravam por ele! Quem é este que me leva? Quem é este que me tem como missão? Quem é este que ama os que arrancam sua ceiva. “:Jesus”, uma mulher gritou e depois um outro homem veio me segurar também. Estava pálido e começando a sangrar, por meu peso.


Parecia que meu destino era só causar dor, ser entulho ou ocupar espaço. Pensando assim, o Jesus me abraçou, dizendo “:- Obrigado” soltou-me. Cai para trás, mas diferente de quando me jogavam. Sua ceiva vermelha misturou com minha pele pálida, que contraste ficou! Não entendi por que puxaram minha cabeça, até ver que aquilo tudo era o “dia do levantamento”. Outras duas árvores do pátio também estavam lá, me encaravam com aflição. No olhar, o nu me abraçou de novo, deitou sobre minha pele e com ele sofri. Aqueles soldados pregavam o coitado em meu corpo! Havia um grito agonizante diferente a cada batida do martelo e no meu coração a dúvida da voz calada deste homem. Eu não conseguiria ser cortado de novo sem nada dizer, por isso grito, e ainda inaudível, gritei. Gritei a cada batida e com ele fui transpassado, se tornou um em mim! Quando nos levantaram vi o mundo. Era maior que Belém, que o pátio, que a multidão, era maior que tudo! Foi surreal ver. E o homem de ceiva vermelha via comigo, ele deitava o olhar por cada parte que conseguia. Havia algo que o impulsionava. Aquela imensidão tinha sentido, seria o motivo daquele silêncio? Deixei de existir. Foram horas no sofrimento, minha carne já era vermelha, ninguém conseguiria ver-me árvore depois de tudo aquilo, de supetão senti o ódio novamente, foi o homem arrancando de novo minhas raízes, dessa vez já acabara com todo meu ser. Eu ia gritar quando o nu disse algo. Ele apoiava o corpo nos pregos e dizia poucas palavras com uma força surpreendente. Foi direcionado à mulher do pátio, ela estava com o jovem, o Jesus disse a ela “Mulher, eis aí o teu filho” e ao jovem “João, eis aí a tua mãe”, e deixei de sentir dor. Aquela cena, na minha frente, foi a prova da “sentido” que Galf procurava, o meu era estar ali. O homem justo emana um sentimento das ceivas vermelhas, perceber que ainda no sofrimento era capaz de importar-se, foi o essencial para que eu pudesse entender, tudo era amor. Bebeu algo numa esponja, tocou-me novamente com as costelas transpassadas e senti na sua forte pulsação que o fim estava próximo. Ele disse um “:-Está consumado”, olhou para o céu, encostou os cabelos molhados na minha pele e disse “:-Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
Olhei também para ver este que chamava de “Pai”, não vi, só gotas descendo, pessoas correndo, barulhos estridentes e eu novamente em transe. Quando acordei, este nu não pertencia mais a mim, haviam tirado-o, arrancaram mais uma raiz e calei-me, pois não tinha ido muito longe, estava nos braços da mulher chorosa. Sua mãe!


Eu não era mais o mesmo. Quando retornei, surpreendentemente todas as árvores falavam, perguntando como tinha sido, mas não respondi por três dias. Não consigo explicar bem, não saia nada, pensei o que vivi, cada instante, querendo talvez viver de novo. Depois falei, disse tudo e mais um pouco, se alegraram comigo, entretanto, não mais que eu; Alguém novo estava lá. Era a madeira que José havia pegado, a última da terceira fileira, o alegre estranhamento rompeu minha voz. Não falei por mais um dia. No outro consegui perguntar, ela disse “:- A casa havia sido saqueada, por alguns homens há quatro dias, e jogaram-me aqui”, estava quebrada, mas não triste, era a mesma felicidade do Galf. E continuou “:- Foi muito bom ter ficado lá, é um lugar aconchegante e familiar, fui tratada como \"ser\"!”. Eu nem sabia o significado dessa última palavra, mas sei que era boa, pois vinha de José. E por fim, dilacerou meu coração “:- Quando cheguei já havia um pequeno homem, eu o vi crescendo e moldando-nos que nem José. Fiquei triste quando soube que ele havia sido levado, mas lembrei do dia que José também me levou, espero que ele já tenha sido moldado! Era o Jesus.”. Não conversei por mais 3 dias, e então gritei, rasgando-me e escrevendo essa história para que você partilhe comigo a alegria de ter sentido!