Manoela

Presença

Esta manhã, ao repetir o ritual que o meu coração me leva inconscientemente a fazer pouco depois que acordo, apoiei o queixo nas grades da varanda para sentir o ar jovem do dia que inicia. Com os olhos pousados nas folhas das árvores que se estendem por todo o campo de visão, me dei conta de que a leve miopia que tenho talvez prejudicasse o verdadeiro potencial do cenário. É que todas às vezes aguço os outros sentidos para sentir na ponta dos dedos os detalhes do espetáculo organizado pela mãe natureza.

Inspiro o cheiro de mata molhada e afino os ouvidos para tentar adivinhar os tipos de pássaros que se exibem. Abro sorrisos ao contemplar o vai e vem das andorinhas e seus voos elípticos. Me divirto pensando que o trajeto repetido, na forma de rodízio, seja fruto de uma gincana que elas jogam no verão. Há poucos dias, me surpreendi ao reparar que, nas horas vagas, borboletas usam o ginásio. Tenho a impressão de que uma específica, cor de abóbora, chega sempre no mesmo horário para treinar uma dança.

Pensando nisso, subestimei a falta dos óculos e encolhi os ombros com certa arrogância, por concluir que o ajuste de um grau em cada olho não faria tanta diferença. Mesmo assim, uma pontinha da alma sussurrou para que eu fosse buscá-los.  Não levei mais que dois minutos para atravessar até o meu quarto e voltar, um pouco ansiosa, para colocar à prova a insignificância do pequeno defeito na minha retina. Confesso que parte de mim queria ter razão e a outra parte, a que escreve poemas, torcia para que houvesse a possibilidade de se adicionar ainda mais beleza à vista.

Fiz um suspense e entrei na sala olhando para o lado oposto. Foi, então, que percebi que, nos quatro meses do dia em que este apartamento escolheu ser meu lar, eu não tinha olhado pra ele em 4k. Por um instante, esqueci a competição interna que me levou a colocar os óculos. Contemplei cada curva. A profundidade dos objetos e das plantas que escolhi com tanto amor. Fiquei hipnotizada por me demorar longos segundos nos traços amarelados das folhas da minha jiboia, que brilham em razão das luzes do pisca-pisca que enrolei para o natal. Percorri as paredes com os olhos, sorri para as orquídeas, acenei para o sofá e agradeci os macramês por darem colo para as minhas plantas pendentes. Senti a ponta dos dedos formigar. É uma pena que “gratidão” seja uma palavra gasta pelas redes sociais, mas não encontrei no meu dicionário mental outro conjunto de sílabas que pudesse substituí-la.

Talvez seja o efeito de concentrar a energia em um único sentido, mas por um momento todos os sons se calaram. Os passarinhos, as gralhas azuis, os cachorros do vizinho e até o barulho que imagino ser o motor da piscina do prédio ou algum ar-condicionado.

Enfim, me virei em direção à sacada. Juro que fiquei tonta. As árvores chegaram tão próximo de me abraçar que meu corpo amoleceu para ser envolvido por troncos e galhos. O formigamento dos dedos se tornou insuportável, até que transbordaram algumas letras e eu escrevi para não me esquecer de viver com presença. Ela é o nosso melhor sentido. 

Estar presente é um presente.