Compras de Natal
Véspera, e ainda me faltavam alguns presentes, castanhas, panetone, fios de ovos para o tender, o ponteiro da árvore que se espatifara, e mais uma lista enorme de supérfluos a que nos obrigamos no Natal.
Todos os anos, depois da ceia, contemplo tudo o que devo lavar, secar e guardar no mais alto do armário, até daqui a trezentos e sessenta e quatro dias. Antecipo o périplo de trocar presentes que não deram certo, de começar, desanimada, a recolher papéis, caixas, fitas, de sufocar a vontade de jogar também no lixo as inutilidades caras que jamais usarei.
É por isso que me afadigava nas lojas, procurando muitas coisas, com tanta pressa. O tempo escasso me aborrecia, o mau gosto dos plásticos coloridos me irritava, e me exasperavam as musiquinhas repetitivas de Natal. Tentava me controlar, na esfuziante alegria falsa do comércio, mas estava à beira das lágrimas.
Foi então que vi o homem. Era um velho grande e ossudo, todo ele da mesma cor de marfim antigo: cabelos grisalhos, pele meio engelhada, roupa muito limpa, amarelada pelo tempo. Caminhava com passo firme e pausado, olhando para a frente, como se estivesse sozinho no mundo. No meio daquele bulício frenético, a imponente figura era como uma estátua do passado, me atraía e acalmava..
Esqueci as frívolas compras, e me engolfei nas recordações de um tempo nem tão distante. Quando as pessoas, a vida, o mundo e também o Natal, eram mais simples. Não se trocava tantos pacotes, os embrulhos eram menos enfeitados, os jogos das crianças não tinham tantas cores, pilhas, controle remoto.
Meus brinquedos da meninice eram como a meia dúzia de joguetes que o velho segurava discretamente na mão esquerda, enquanto com a direita fazia um deles funcionar. Um palhacinho malabarista que fazia piruetas entre duas paralelas ligeiramente pressionadas nas pontas, pelo indicador e o polegar. Igualzinho a um que me encantara na infância.
O trabalho do homem era primoroso, feito a canivete, na madeira lixada, lisa como seda. O movimento do boneco, sem trancos nem oscilações, equilibrado com maestria. Imagino quantas horas, quantos dias, o velho senhor trabalhou para produzir aquela meia dúzia de saltimbancos perfeitos, também cor de marfim antigo.
O que levara aquele homem simples a se atrever no bulício do comércio, sem coragem de oferecer sua ingênua mercadoria? Foi ilusão de produzir alegria, a necessidade de ganhar algum dinheiro, ou o nobre orgulho do artesão exibindo a sua habilidade ?
Era brutal e doloroso o contraste entre o caminhar lento e silencioso do homem, com seus brinquedos cor de palha, e a azáfama ruidosa das pessoas que corriam pelas novidades chamativas das vitrinas. Percebi, no velho artesão uma perplexidade jgual à minha, de quem sente estranho o mundo, e vazio o Natal.
Com cruel agudeza intuí que ele burilara minuciosamente o saltimbanco à sua imagem: uma figura amarrada ás paralelas das convenções, aos fortes cordões das necessidades, com um destino submetido a imprevistas cambalhotas sem sentido.
O malabarista era também a minha imagem, movida por invisíveis cordéis, limitada por grossas balizas, obrigada a piruetas ridículas que executo sem reclamar.
Quis comprar a meia dúzia de brinquedos para quando me nascessem netos. Tive vontade comentar com o senhor que um desses saltimbancos me encantara o Natal, e nem era tão bem feito. Pensei em contar a ele minhas saudades de coisas lindas e ingênuas, do presépio, da missa do galo, do repicar de sinos.
Enfim, por mais que me identificasse com o velho artesão - oh, balizas! - não seria apropriado fazer confidências a um estranho! Enfim, e todas as coisas que eu precisava ainda comprar - oh! cordéis! - as castanhas, os fios de ovos, o panetone, o ponteiro da árvore?
Apressei o passo e me afundei no torvelinho das compras de Natal.