Santa Rosa

Memórias do Verde

Entro no desmundo de agora

E me encontro com o parlamento das arvores

Elas, mudas me olham

Eu, mudo, as olho

Mudos permanecemos

Elas gritam, mas eu não escuto

Olho firmemente. O arapaçu troca confidências com o vinhático

Eu vejo, mas não entendo

As folhas tremem, digo que foi o vento

O arapaçu voa espavorido

Quedo-me frente ao parlamento das árvores

E não tenho defesa

Sou mudo, quase cego, sem tato

Mas sinto o cheiro do verde e da terra

Os cheiros são molhados, mas não chove

Será que as arvores choram?

Mergulho no tempo

Braços do passado me envolvem num abraço que almejo

Um hálito verde sopra ao meu  ouvido

É quem sempre peço que me ensine a andar sem os pés no chão

O abraço abre meus ouvidos, o hálito verde resgata meu tato

E o som sussurrado me abre os olhos

“descubra a tomada da árvore, siga a energia”

Fecho as portas da loucura humana

A musa, minha e de Virgilio, conduz ao paraiso

Tiro meus pés do chão e caminho no etéreo

“onde está a tomada da arvore?”

Tateio com o olfato o vinhático

O ferreirinho relógio me espia do ninho

O hálito verde me acalenta e me instiga

Quero viajar no seu colo

Mas as abelhas chamam minha atenção

Entram por uma dobra na casca e somem dentro da árvore

Introduzo meus dedos como plugs

E meus braços se enlaçam na árvore

Todos os sentidos se mesclam

O parlamento das árvores ganha voz

Ganha voz? Que bobagem. Sou eu é quem ganha ouvidos

Vejo as faces de cada membro do parlamento

Vejo que eles se conectam e se sentem

O jacarandá se orgulha do ninho que abriga

Pede que eu cuide dos seus inquilinos

O vinhático diz o mesmo sobre suas abelhas

Conta que é uma colmeia já bem madura e que as abelhas não tem ferrão

A embaúba diz para que eu não me recrimine, que logo suas sementes vão rebrotar

A gameleira me conta que sua prima, antes de ser cortada,

Agradeceu pela retirada das epífitas e que essas agradecem o novo lar

São tantas falas, quero escutar a todas

O vinhático chama minha atenção, diz que já é hora de partir

Quero dizer que não,

Mas a tomada da arvore expulsa meus dedos

Desfaz-se a conexão

O barulho da motosserra é cada vez mais próximo

O vinhático estrala

E meus olhos vertem seiva do parlamento das árvores.

 

Conceição do Mato Dentro,  07 de novembro de 2020

(* sugiro a releitura ouvindo “ memories of green” de Vangelis ou “the momories of trees” de Enya)