O CISNE
Ema Machado
O pequeno ser, olhava estupefato a cheirosa iguaria colocada a sua frente. Seu estômago doía, mas, sua pequena mão não ousava obedecer ao comando da fome.
- Vamos, orar e agradecer a Deus o alimento. Dissera a mãe, e, meio que engasgada procedera o agradecimento seguida pelos demais.
- Coma, filho!
- Não consigo, Mamãe!
- Precisa, querido. Não há mais nada para comer, e se não o fizer, poderá ficar doente. Explica a mãe.
Cabisbaixo, o garoto maldizia a fome - apanha um pedaço de carne, leva-o a boca. Enquanto mastigava lágrimas escorriam pela face rosada - naquele instante jurava a si mesmo: Nunca mais comeria carne em sua vida...
Dera-lhe o nome de Guido. Seu pai o levou para casa juntamente com outros dois cisnezinhos, porém foi o único que sobreviveu. Os outros haviam morrido há algum tempo, perseguidos pelo cão de caça dos vizinhos. Desde então, Guido era a alegria de todos. Sempre o acompanhava nas peraltices pelo quintal.
Guido era desengonçado - o pescoço comprido parecia desproporcional ao corpo curto e arredondado. Aos poucos, foi crescendo e mudando de cor, tornando-se a mais bela ave que já havia visto. Possuía o porte de rei, gostava de exibir a beleza no pequeno lago para ele construído. Quando alguém se aproximava da entrada, estava sempre a postos, fazendo as vezes de cão de guarda - era uma barulheira só, todos sabiam que havia alguém aguardando no portão. Ainda era fase de “vacas gordas” como se diz - a comida era farta e a família podia se dar ao luxo de possuir até empregados.
Enquanto comia, o garoto lembrava-se das vezes em que tentara monta-lo, ele saía grasnando e rebolando de asas abertas. Das vezes em que estando contrariado, sentara-se na escada da porta de entrada e Guido vinha se aconchegando - sempre o abraçava, ele deixava-se abraçar como soubesse de sua tristeza e quisesse conforta-lo.
- Filho, coma! Já está frio. Assim, não conseguirá terminar de comer, e, não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar.
O garoto dá mais uma mordida, a garganta doí a cada engolida. A mãe o observa condoída, sabia o que Guido representava para toda a família. Era a alegria dos dois filhos.
Primeiro tivera uma menina, cinco anos depois, quando já não pensava ter mais filhos ficou grávida. Isso, há dez anos... Contempla seu corajoso homenzinho tentando alimentar-se do melhor amigo... Dias difíceis aqueles. A guerra trouxe escassez de alimentos em toda parte, não havia trabalho por perto e o esposo teve que ir para longe, em busca de sustento. Maria, a mucama que lhes servia, recusara-se a ir embora - não tinha para onde ir. Foi a autora do triste ato em preparar a ave para o almoço. Há dois dias não havia uma refeição decente, comiam apenas um pequeno naco de pão sem fermento, preparado com o resto de trigo da despensa.
- Mãe, posso perguntar algo?
- Pode, querido! O quer saber?
- O Guido, sentiu muita dor?
- Cada vez que engulo, sinto como se ele estivesse sofrendo.
- Não filho, acho que ele não sentiu dor. Maria fez um serviço rápido, e penso que não teve tempo para ele sentir nada. Agora, deve estar no céu dos bichos, nadando em um lago azul. Você come apenas a matéria que ele deixou para alimenta-lo. Foi por uma boa causa, ele também sentiria fome se continuasse aqui. Não teríamos como alimenta-lo.
- Está bem, mamãe... Sei que foi preciso. Mas, não posso deixar de pensar que eu o traí. Ele sempre foi meu amigo, nunca me deixou sozinho... E agora...
A mãe compartilhava do sofrimento do filho - sabia que não poderia aplacar aquela dor, abraça-o e juntos choravam. Manteve-se forte até aquele momento, porém, não suportava mais ver o quanto ele sofria. A filha mais velha, que até então assistira calada, junta-se a eles n’um abraço triplo - aquele seria um momento inesquecível...
Os três começam a recordar as peripécias de Guido, e acabaram deixando de lado as lágrimas.
- Lembra, o dia em que ele entrou no meu quarto e acabou sujando todo o tapete com os pés cheios de lama? você disse, que a qualquer hora o colocaria na panela!
- E você, maninho? Sempre queria fazer dele seu cavalinho, quando isso ocorria, ele sempre corria para o laguinho em busca de sossego. Dizia a irmã rindo entre as lágrimas, que teimaram em retornar aos olhos.
- Dona Joana, posso retirar a mesa? Pergunta Maria, cabisbaixa.
Entrou acanhada, com aquele jeito de avó. Ninguém sabia o quanto lhe custara o feito. Com lágrimas nos olhos matara e prepara a ave, e, enquanto o fazia, também lembrava das peraltices que o garoto aprontava com Guido. Em uma delas ele o pintara de azul, tinta com a qual o patrão pintava a parte externa da casa. Foi necessário muito sabão, até conseguirem remover toda tinta.
- Pode tirar, Maria. Acho que ninguém vai comer mais. Guarde as sobras para o jantar. Quando a fome apertar ainda teremos o que comer.
O garoto pensou na resposta da mãe. Será, que ainda teria que passar por toda aquela tortura novamente? Só em pensar, seus olhinhos se encheram de lágrimas mais uma vez.
O tempo passa, o garoto cresceu, agora é um famoso advogado. Formou-se e constituiu família - moram em uma bela casa. Como seus pais, possui dois filhos; um garoto de oito anos e uma menina de cinco. A vida seguiu curso e os filhos têm mais do que tivera a vida inteira: brinquedos, boa escola, passeios e boa diversão. Às vezes, em instantes de nostalgia, recorda os tempos de criança – Pensa - as coisas atuais são tão diferentes! Os filhos sempre querem alguma coisa nova, parece nunca satisfeitos com o que possuem...
- Querido, já chegou! Vá tomar um banho. O jantar está quase pronto. Mandei preparar sua massa predileta. Também separei um gostoso vinho para nós.
Após um delicioso banho, ele segue até a copa onde todos se encontravam para o jantar. A mesa estava linda, seus filhos estavam desinquietos.
- Mamãe, não quero massa no jantar! nem salada! Será, que sobrou o pato ao tucupi do almoço?
Ninguém perguntou, porém, todos perceberam a repentina mudança naquele homem forte. Os olhos se encheram de lágrimas ao se voltarem para cozinheira que entrava. Trazia nas mãos uma travessa, continha o que para ele parecia mais um cadáver, o restante de uma ave... A lembrança ainda o machucava, não havia esquecido a promessa feita ao amigo - Nunca mais comera carne em sua vida...