JUCKLIN CELESTINO FILHO

TRAGÉDIA ROMANA

 

TRAGÉDIA ROMANA
PRIMEIRA PARTE – O PODERIO DE ROMA
I
Como a alma anseia a liberdade,
Alçar-se à imensidade,
Do infinito ver deslumbrantes paisagens,
Mundos nunca imaginados!...
Visões etéreas de antepassados,
Vaporosos vultos:
Fantasmas, assombrações vagando
Pelas ruinas de passadas eras,
Buscando na memoria
Grande parte de Roma:
“A Domus Transitória,
As suntuosas edificações do Platino,
O antigo Templo de Júpiter Estator,
O Lar das Virgens Vestais”,
As cercanias da cidade,
Todo esplendor
Que fora destruído pelo fogo.
Fantasmas queridos
Vagam perdidos
No tempo, no espaço,
Ainda tentando desatar o laço
Que os prendem ao passado,
Vendo assomar lado a lado
Personagens do mais atroz
Drama que viveram
Perpetrado em sua essência
Por um louco assassino.
Inda os vejo, majestosos,
No visor do pensamento:
Ligia, Marcos Vinicius,
Petrônio, Nero, Popeia  Sabina,
Chilón Chilonides, Eunicia,
Paulo de Tarso, Pedro, Aulo Pláucio
Tigelino,  Pompônia Grecina,
Acte, Ursus, Sêneca,
E outros figurões que por terem
A fortuna lhes sorrido,
Pensavam serem eternos,
A quem a morte não alcançaria jamais.
Mero engano!
Por mais grandiosos,
Desmorona-se  prédios  suntuosos ,
Portentosos tronos !
Tudo tem seu termo final,
E na morte, todos são iguais.
Deixemos escoar
Das brumas  do passado,
Uma história milenar
De tragédia, perseguição,
Fé inabalável,
Complô, bajulação, traição,
Amor,  esse, sempre iluminado,
Sobre todas as coisas, insuperável,
Quebrando peias, rompendo grilhões,
Chegando  a outrora
Intransponíveis corações,
Forte, definitivo, triunfal!
II
Rasgando o véu do tempo,
Vislumbra, minha retina pasma,
Roma em toda opulência
Dos césares, dos bacanais,
Dos burburinhos enfernais
Onde a orgia corria solta, querência
Do Platino, regadas a beberagens,
A libertinagens,
À custa de lascívias, no mais infame covil,
Cuja virtude, naqueles tempos sombrios,
Era tão escassa,
Onde grassava todo tipo de depravação:
Deslumbrantes mulheres,
Mimos desfrutáveis,
Ínfimas  mercadorias apreciáveis,
Ali expostas, nas pândegas palacianas,
Ao som de luxuriantes
Requebros sensuais,
Dança do Ventre,
E outras maneirices sexuais
Para deleite dos convivas.
Nesse ínterim,
Surge a figura rotunda de Nero,
Balançando a pança,
Sorrindo bestialmente,
Exibindo suas escravas,
Comercializando-as a preço vil
No festim desenfreado!...
Praxe na sua vida tão devassa!
Ao lado,
Na Tribuna de Honra,
Petrônio, o “Arbitro da Elegância,”
E seu sobrinho recém-chegado
Das batalhas vencidas,
De tantas honrarias incendidas,
De desprendidos brios,
O Tribuno Marcos Vinicius, tão loureado!
Cesar, volvendo os olhos para belíssima
Jovem que dançava, aponta:
 - Vinicius, olha! Que esplendor!
Que  bela escrava! Beleza assim,
 Não te espanta?!
 O fascínio dela não entonta
Até mesmo a mim,
Teu Imperador?!
Se a queres?
Dar-te-ei a ti!
O moço contrapõe a sorrir:
Divino, vosso presente, muito me apraz!
Não quero ir de encontro à vossa divina graça.
Não é desfeita,
Compreendeis, à vossa deidade.
Mas declino de tamanha honrabilidade.
Já tenho minha eleita!...
Um anjo, a quem as estrelas,
o céu e o luar, prestam culto,
Fascinados com seu gracioso vulto!...
Enquanto isso, descansa
O  sol no  horizonte.
Por  detrás
Dos montes,
As nuvens se tingem de vermelho sangue.
Um contraste de beleza,
E ao mesmo tempo trágico,
O sol pintado de rubro,
Empresta encanto à natureza,
Confundindo-se com as rubras chamas
Que devoram a Cidade Eterna,
Templo dos rutilantes
Césares romanos,
A quem o mundo beijava os pés ,
Prostrando-se de joelhos
Ante a poderosa  Roma,
O Império mais portentoso, mais vetusto!
Que sabidamente não era uma virtuosa vestal!
Estava mais para meretriz universal!...
“Rainha e cortesã”,
Libertina e pagã,
Permissiva e corrupta,
Tendo a luxúria como bestial diversão
Naquele antro de perdição,
Por um louco assassino presidido,
Cujos mais poderosos tronos
Tremiam ante o poderio romano!
 
SEGUNDA PARTE – A TRAGÉDIA
I
No cenário aterrador,
Qual Dante, no inferno redivivo,
Revejo um quadro medonho,
Um dantesco sonho,
Terrível pesadelo:
Sofrimento!  Dor!
Ais de agonia!
Frenética correria!
Caos reinante
Nas vascas do  pavor!...
As chamas  quais serpentes em espirais
Lambendo tudo, com suas linguas de fogo
No serpentear de horrores inauditos:
Fumaça. Fumo. Dores infernais.
Labaredas descomunais crepitando.
O fogaréu crescendo, aumentando,
Tingindo mais e mais de vermelho o horizonte!
A loucura imperando.
O fogo fazendo destrutível trabalho:
Casas, prédios, desmoronando,
Gente desesperada
Na correria desembestada,
O juízo perdido,  desnorteada,
Plena  de loucura --
Já sem domínio de si própria,
Enlouquecida de amargura --
Uma, a outra  atropelando;
Na terra vermelha de sangue e labaredas,
Os mortos vão acumulando;
Choros, ranger de dentes,
Tormentos de agonia,
Alaridos de pânico  tomando
Conta de uma Roma assolada,
Pelo medo apavorada;
A calamidade massacrante,
Exasperante,
O escarcéu,
Um pobre povo à mercê de um monstro tirano!...
E o fogo crescendo... crescendo...
O incêndio a tudo destruindo.
Inclusive, as provisões
De abastecimentos alimentares
Da  acuada cidade,
Circundada pelo fogaréu
Que ganhava mais intensidade!...
E as chamas lambiam,
Devoravam,
Destruíam;
Prédios, casas, casebres, cabanas,
Miseras choupanas,
Desmoronavam,
Caiam,
Como se fora castelos de papelão;
Pessoas espavoridas fugiam,
Se atropelavam
Na grande tragédia romana.
II
Do Platino, contemplando sua obra pavorosa,
Ao som de gargalhar sinistro, horripilante,
Surge a medonha, monstruosa,
Grotesca, bizarra criatura,
Nero, protótipo de pessoa, uma aberração,
A mais horrenda figura:
Pescoço de ganso,
Olhos de serpente pronta a dá o bote!
Besta fera ornada de brilhantes,
Ametistas e diamantes,
As mais preciosas pedras,
Que ao invés de o embelezarem,
Mais enfeiavam
A figura caricata,
Exagerado em artefatos de ouro,
Ostentando seu rico tesouro,
Assistindo indiferente
À tragédia por ele perpetrada.
III
Do alto, descortina-se Roma inteira,
A poderosa cidade,
Cujo mundo não podia mensurar,
Sequer imaginar,
Sua imensa grandiosidade,
Facetada por brilhantismo
E obscurantismo!...
Em meio à tanta pompa,
Era viciada, corrompida,
Tendo cidades, reis e reinados,
Aos seus pés calcados
Por um  Cesar louco, assassino, sanguinário,
Uma  besta  amante da devassidão,
Das orgias, dos bacanais desenfreados,
Um ser de instintos perversos, deletérios,
Atitudes monstruosas,
Que não poupou nem a mãe, nem a mulher,
Nem o irmão,
Fera que dominava a terra inteira
Sob o signo do terror,
Escudado por 30  guarnições
De legionários bem treinados,
E um séquito de compassas

:Bajuladores,celerados, cortesãos e  libertos

,De ouro e estofos impecáveis cobertos,
E aqueles que, para não serem sentenciados
À execração pública e à morte,
De sorte,
Tinham que aquiescer,
À base de risadas e gracejos, concordando
Com as sandices nerianas;
Outros mais,
Dignitários patrícios, ou castelãos,
Na esbornia palaciana refestelados,
Exibindo-se  a reboque  de liteiras suntuosas;
À parte, os plebeus (“destituídos de direitos políticos”),
Considerados a ralé pobre da cidade;
Por fim, as preferidas
Vitimas da sanha de César, os cristãos,
A quem fora atribuída a tragédia
Do incêndio romano!

TERCEIRA PARTE – PERSEGUIÇÃO AOS CRISTÃOS
I
O incêndio destruiu a cidade
Quase que inteiramente,
A devastando também, economicamente.
Juntando os cacos da hecatombe,
Petrônio chama a si a responsabilidade
De os ânimos acalmar:
--  Divino César,  para esse imbróglio, ao qual
Inadvertidamente te meteste, só há um jeito,
E só tu, por seres Imperador, tens o direito
De fazê-lo,  embora  incorra
Em uma infâmia sem precedentes --
Espalha o boato que foram os cristãos
Que atearam fogo em Roma.
-- Bravo, Petrônio. Você nunca me abandona!
De você, uma solução sempre vem à tona!
É perfeito, o ardil a preparar!
Beleza! Os cristãos serão  acusados
De o incêndio  terem  provocado.
Anda... corre... do palácio desce.
Já me  apercebi...
O perigo de onde vem vi!
A onda humana cresce,
A  populaça
Já toma a praça!
Vai ter com essa gentalha!
Antes que essa praga, o palácio tome!
Não demora, Petrônio! O boato espalha!
Vou trabalhar os castigos a eles infligir.
A forma de execução
A conduzir,
Com seu consócio
“Árbitro da Elegância”,
Em prática porei!...
As mais acerbas atrocidades.
Improvisando nas maldades --
Cruentas execuções
Com parcimônia engendrarei!
Há! Há! Nossos leões
E animais selvagens um banquete terão!
 II
O burburinho crescia.
A multidão sedenta de sangue
Gritava, urrava,
Freneticamente incentivava
Torturas e mais torturas!...
Queriam ver mais sangue.
Mais agonia!
Mais aflições!
Mais desventuras!
Queriam um espetáculo
De  sangue e morte!
E as feras agitadas bramiam.
Há dias comida não viam!
As pessoas ensandecidas:
Soltem os leões!
Morte aos cristãos!
As jaulas foram abertas.
As feras soltas, despertas,
De fome, enlouquecidas,
Farejando,
Urrando,
Sentindo o cheiro de carne humana
Partem pra cima dos reféns, irmãos em Cristo!
--  Que é isto?
Que coisa inusitada!
Nem um aí! Nem um lamento!
Nada!
Que povo!
Que  pessoas  destituídas  de medo!
Que temperança!
Que destemor!
Vai para a matança
Cantando hinos de louvor
Ao Deus que cultuam,
Um chamado Jeová!
Admiro a bravura
Dessa gente, ante tanto sofrimento,
 Sua fé não abandona!
 -- Sêneca, suas palavras tolas
Nos meus ouvidos flutuam,
Como monumento à burrice!
Não o repita! Para com isso, já!
Deus, só eu, Nero! Outro, que se arvorar
A tal, reputo, como grande  impostor!
Aquele Deus que dizem reinar
Nos céus, acima das estrelas reverberar,
Não existe.  É boba crendice
Daqueles fanáticos cristãos!
III
Nero perfila-se no auge da loucura!
Declamando versos,
Castigando a lira!
Sua verve ruim, sobressaia,
A Petrônio enfurecia!
-- Divino, seria de bom alvitre,
Que não prosseguisses!
Tua poesia é destemperada!...
Versos pífios, desconexos,
Que não levam a nada!
De um acentuado mau gosto! -
Exclama o “Árbitro da Elegância”,
Com a raiva anuviando-lhe o rosto.
Aí de mim, escutar, sempre, essa excrecência,
Que o estomago me revira!
Há que se ter, muita tolerância!
-- Vai, César, toma da pena.
A morte me decreta!
-- Oh, Petrônio! Por  quem me toma?
Em toda a Roma,
Sabe-se do apreço que a ti, dedico!
Jamais, minha pena
Assinará sentença tua!
Convém, entretanto, que não ouças,
Buchicho da rua,
E nem acredites, em maledicente futrico.
-Certo,  César!
 Mas prepara outro poema
De versos mais aprazíveis.
-- Petrônio,  já o preparei!
Vo-lo colocarei
A par de uma obra-prima!
-- Que seja, divino!
Mas o faça, de forma discreta!
Sem os espalhafatos costumeiros! --
Volveu Petrônio!
Depois de um enfadonho poema recitado.
Fiquei a matutar:
Não se cogitava pensar que o acervo de maldades
De Nero, tinha acabado,
E seu arsenal de atrocidades finado,
Estranhava-se, outrossim,
O tempo por ele dado
Numa quadra de alguns meses sem agir.
Mas veio logo a resposta:
A deletéria criatura
Na surdina trabalhava,
Um plano bem mais infame engendrava,
Concebido por sua mente conturbada:
Tinha ele, ainda, um projeto diabólico derradeiro
A executar contra os cristãos.
IV
Por meses, pelos cantos da cidade
A percorrer desesperados,
Vasculhando cada ruela, cada cantinho,
Procuraram os abnegados
Servos de Cristo por Calina,
Sem saber que a moça definhava,
Acerbamente delirava,
Nos estertores de tormentos
Aos poucos morrendo,
Tristemente padecendo:
O corpo quase destituído de carne,
Encerrada num mísero quartinho
Da prisão do palácio de Nero.
De repente,
O clamor!
A multidão grita, urra!
Queda-se imediatamente
Em estupefação!...
Nero, não podia ser mais infame!
Ergue o dedo.
Ordena  soltar a fera –
Um gigantesco touro selvagem,
Há dias sem comer,
Enfurecido de fome!...
A multidão ansiosa espera...
No instante
Em que cambaleante,
Sem um resquício de temor,
Cantando hinos de louvor
Ao Criador,
Entra na arena,
Bela,  serena,
Mesmo ante tantos sofrimentos,
Ligia, ossos e pele apenas!...
Todos se levantam,
Pasmos de horror,
Transidos de medo!
Um misto de loucura e admiração
Frente à passagem
Daquela encantadora criatura,
Singular personagem.
Outra personagem entra em cena,
Para furor da plateia.
Vendo sua princesa ligiana
“Atada aos chifres do touro selvagem,
Ursus, até então humilde, submisso”,
Transforma-se, qual leão,
Quando tentam na mata,  lhe furtar
O alimento:Com os pulsos retesados,
Cinde-se animalescamente,
Numa estranha mutação ---
Ao mesmo tempo homem e fera;
Detendo, seguro pelos chifres, o animal...
Homem e fera  forças medindo,
A multidão  perplexa assistindo
Àquela refrega desigual,
Sedenta de sangue – um delírio de horrores:
Animal e homem no limite de suas forças.
Ursus, num esforço sobre-humano,
Quase a romper
A coluna vertebral...!
Os circunstantes deliravam...
De repente, da arena, de espanto
Escuta-se um alarido.
A terrível fera tomba, vencida.
Ao ligiano, a plateia enlouquecida
Aclama, erguendo o dedo em positivo,
Pedindo pela vida do seu novo herói:
Ursus! Ursus! Vida a Ursus!
Nero teve que ceder à turba enfurecida.

QUARTA PARTE – QUEDA DE NERO
I
Sabia Petrônio por amigos mais próximos,
Que seu momento havia chegado.
O ato condenatório já estava por Nero assinado.
Para não dar a César  o gosto de sua execução,
“O “Árbitro  da Elegância “deliberou
E em propícia ocasião,
Uma grande  festa planejou!...
E no ápice dos festejos,
Frustrando os mesquinhos desejos
De Nero  presenciar
Sua morte,
Chamou a ex-escrava Eunicia,
A quem tomara por consorte
E participou:
-- Amor, é chegada a nossa hora!
Não darei ao infame
Que tem um rótulo de besta fincado na testa,
O regozijo de tripudiar,
Ordenando nossas mortes!
Vem, não demora!
É termo final à pomposa festa,
Despedida merencória
De quem está indo embora!
II
O tempo corria
Para os dos amados...
Petrônio, cuja voz tremia,
Semblante carregado,
Num sopro de voz balbucia:
-- Doutor, vem!
Tempo já  não  há!
Num impulso:
Faz o que deve já!
Aqui está:
“Estende-lhe o pulso.
O cirurgião rasga-lhe a artéria.
Eunicia, bela, serena,
Longe de estar tristonha,
Face discretamente risonha,
Repete o gesto do amado.
Tombam os dos abraçados”!
III
Por testemunha,
A deusa dos namorados, a lua:
Aquele que dispunha
Da vida alheia,
A distribuir sentenças
À mão cheia,
Como capricho de tirania,
Apequenava-se, tremia,
Ante a própria sentença tua!
Ele, chamado de divino César,
Que manejava
Qual marionete os cordéis
Da vida e destino alheios,
Chorava feio, lastimava
A sentença que lhe fora imposta.
Vendo a guarnição
De Galba bater à porta,
Phaon alerta:
Não  há mais nada a fazer, divino!
Está cercado o Platino.
Morre com honra,
Grande Nero!
Não cabe prestigio, a um Imperador
De vossa cepa, chorar a dor
De um revés, ante um inimigo fero!
Tira-vos, a própria vida!
Num assomo de loucura,
Frente à morte que se avizinhava, Nero,
Num ato de fingida bravura,
Como se estivera representando
O ultimo ato da vida,
Exclama: “que artista,
 Vai o mundo perder”!
Apagou-se então,
Os lumes que o prendiam à vida.
De César, estava selada a sorte,
Uma inglória morte!
Phaon com um  golpe seco do punhal,
Finda-lhe  a  história,
Capitulo triste da tragédia romana,
Perpetuada por séculos na memória.