SADE

A liturgia do silĂȘncio ptI , II ,III ,IV

A liturgia do silêncio pt.I

eu não penso
eu sou atravessado

ideias me usam
como quartos baratos
deixam cheiro de ferrugem
e nunca pedem desculpa

a vida me olha torto
desde cedo
talvez porque eu nunca ajoelhei
talvez porque fiz do silêncio
um altar blasfemo
onde só eu rezo

falo pouco
porque palavra é faca
e quem aprende a ouvir
aprende onde cortar

escutar
é um vício mais fundo
que falar
ouvir me dá poder
me dá vantagem
me deixa inteiro
enquanto os outros sangram ruído

escrever
é minha forma mais honesta
de permanecer vivo
um vício elegante
uma autópsia contínua
feita em mim mesmo
sem testemunhas

meu romantismo
nasceu do erro
amo como quem aceita
que não há salvação
apenas presença
intensa
sufocante
real

não prometo ternura
prometo verdade
e verdade pesa
amar comigo
é aprender a suportar
a própria queda
sem pedir luz

há desejo em mim
como há fome em feras
não é pressa
é método
não é violência
é gravidade

dominar
é sustentar o abismo
sem fugir
é saber conduzir
o colapso
com mãos firmes
e coração frio

sou excesso
sem desculpa
sou caos
que não busca cura
sou sombra
que não quer ser perdoado

se me acham escuro
é porque a claridade
sempre me pareceu
superficial demais

o silêncio me escolheu
a escrita me amaldiçoou
e quem se aproxima
precisa entender:
não ofereço redenção
ofereço intensidade
até o fim.

 

A liturgia do silêncio pt.II

 

não penso
algo pensa em mim

entra
sem pedir
move os móveis da cabeça
deixa tudo fora do lugar
e vai embora

o silêncio
não é paz
é escolha
é faca guardada
é olhar que dura mais
do que a frase

aprendi a ouvir
porque quem fala demais
se entrega
e eu sempre preferi
ficar
de pé
por dentro

palavras me evitam
por isso escrevo
arranco uma a uma
como dentes podres
necessários

escrever
não salva
mas mantém
de pé
o que a vida
tenta dissolver

meu romantismo
não sabe pedir
ele ocupa
ele pesa
ele fica

não é flor
é raiz escura
crescendo onde não devia

há desejo
mas ele não grita
observa
mede
espera

dominar
não é ferir
é sustentar
o limite
sem tremer

é conduzir
o caos
com mãos sujas
e atenção absoluta

sou excesso
mal contido
sou falha recorrente
sou sombra
que não quer explicação

não busco cura
busco intensidade
o bastante
para justificar
ficar

o silêncio
me reconhece
a escrita
me cobra

e quem se aproxima
precisa saber
não tenho promessas
tenho profundidade
e ela
nem sempre
deixa voltar inteiro.

  

A liturgia do silêncio pt.III

 

meus pensamentos
não andam
eles colidem

são cães sem nome
brigando no escuro da cabeça
onde a vida não pergunta
apenas empurra

eu aprendi cedo
que o silêncio observa melhor
que o barulho denuncia
então fiz do calar
uma religião suja
e da escuta
um vício

falo pouco
porque quem fala demais
perde o domínio
e eu gosto do peso
de estar por cima
mesmo imóvel

escrevo
como quem sangra devagar
não por dor
mas por dependência
palavra é a única droga
que me deixa inteiro
quando o mundo tenta me quebrar

há em mim
um romantismo torto
não de flores
mas de abismos compartilhados
eu não amo leve
eu amo como quem aperta
não para ferir
mas para lembrar
quem conduz o ritmo

meu desejo
não é grito
é controle contido
é mão firme na escuridão
prometendo queda
e oferecendo chão

há prazer
no limite
na entrega silenciosa
no jogo onde o poder
não humilha
mas consome

sou feito de excesso
mas pratico contenção
sou caos
cultivando disciplina
sou sombra
que aprendeu a tocar
sem pedir permissão
à luz

e se pareço escuro
é porque vi demais
e escolhi ficar
onde poucos têm coragem
de ouvir

o silêncio
me obedece
a escrita me mantém vivo
e a vida…
a vida que aprenda
a me suportar.

 

A liturgia do silêncio pt.IV

meus pensamentos
não me ferem
eles me cortejam

chegam como tempestades educadas
pedindo licença
antes de destruir
tudo o que tocam

aprendi a amar o silêncio
como quem ama alguém difícil
que diz pouco
mas entende tudo

escuto mais do que falo
porque ouvir
é uma forma elegante de domínio
e porque as palavras
quando raras
valem mais

escrevo
não para fugir da vida
mas para seduzi-la
palavra por palavra
até que ela se deite
exausta
aos meus pés

há em mim
um romantismo obscuro
não o das promessas
mas o da entrega consciente
onde o perigo é conhecido
e mesmo assim desejado

meu toque
não é pressa
é comando sutil
uma dança lenta
entre limite e confiança
onde o prazer
nasce do abandono

dominar
para mim
é saber conduzir
sem esmagar
é fazer do controle
um gesto de cuidado
e da intensidade
um abrigo

sou feito de excesso
mas amo com precisão
sou caos
que escolheu a forma
sombra
que aprendeu a aquecer

e se meu amor é escuro
é porque ele vê
onde outros fecham os olhos
é porque prefere a noite
onde dois corpos
ou duas almas
não precisam fingir luz

o silêncio me ama
a escrita me sustenta
e quem se aproxima
precisa saber:
não ofereço paz
ofereço profundidade.