Sou o homem que não se vê.
Que passa diante do espelho
como quem cruza um estranho na rua
e não pede desculpas.
Não me reconheço no nome,
não me entendo nos gestos,
não sei em que curva do tempo
me perdi de mim mesmo.
Há dias em que sinto
que meu tempo aqui já passou.
Não por pressa,
mas por cansaço.
Como um relógio que ainda anda
mesmo depois de quebrado.
Caminho em círculos
ao redor do meu próprio abismo.
Olho para baixo
e ele olha de volta.
Não me chama.
Não me empurra.
Ele apenas espera
como quem sabe
que tudo acaba caindo.
Às vezes beijo a morte.
Não nos lábios,
mas na testa fria da ideia.
Dançamos juntos
em noites em que o silêncio pesa
mais que qualquer culpa.
Ela me conduz devagar,
respeitosa,
como se dissesse:
“Não hoje…
mas estamos próximos.”
A solidão não grita.
Ela senta ao meu lado.
Divide o meu cigarro
escuta meus pensamentos podres
sem me julgar.
É fiel.
Nunca vai embora.
Carrego pensamentos escuros,
sujos,
pesados como concreto molhado.
Ideias que não pedem luz,
não pedem salvação.
Pedem apenas
para existir
sem serem negadas.
A dor e o ódio
moram no mesmo quarto.
A raiva dorme na cama,
a dor no chão.
Uma acorda a outra
todas as manhãs.
O amor…
ah, o amor.
Ele é o oposto
e o cúmplice.
É faca e curativo.
É aquilo que mais machuca
porque foi real.
Porque um dia foi abrigo.
Odeio com a mesma intensidade
com que amei.
E talvez seja por isso
que ainda estou aqui.
Porque o vazio absoluto
não sente raiva,
não sente dor,
não sente nada.
Sou feito de extremos
que se abraçam no escuro.
Raiva que nasce do amor.
Ódio que sangra saudade.
Dor que prova
que ainda existo.
Sou um homem desiludido,
sim.
Mas não vazio.
Sou ruína consciente,
cacos que pensam,
um corpo que anda
carregando um funeral interno
todos os dias.
E mesmo assim,
continuo respirando.
Não por esperança.
Mas por desafio.
Por teimosia.
Por não dar à morte
o prazer de me levar
antes de eu entender
quem fui
ou quem deixei de ser.
Se este é o inferno,
aprendi a caminhar nele.
Se este é o fim,
ainda estou atrasado.
E enquanto isso,
danço com meus demônios,
beijo a morte na sombra,
e sigo
um homem que não se compreende,
mas que ainda sente.