Aquele poeta

Conto: O Espantoso Monstro e o Pardal.

 

O Espantoso Monstro e o Pardal

         Lá, bem lá, bem longe, mais longe do que você imagina, mais um pouco para frente; isso, bem aí. No remoto cantinho montanhoso de alegres ventos nômades, onde vastos e numerosos trigos e milhos desapareciam no horizonte banhado pelo sol e o silêncio tinha cheiro de terra úmida e molhada, havia uma plantação antiga, fria, cercada. Era ali que ele permanecia: o espantalho robusto, plantado como um pilar guardião das searas, assistindo os dias passarem cumprindo o destino, sua sina espantosa.

       Seu corpo era largo, feito para intimidar, mas o que havia nele de grande era só a estrutura. A jaqueta, colocada quando era talvez quente e estilosa, agora se apresentava em tons apagados, com mangas roídas pelo vento e costuras abertas. O rosto, moldado de feno e palha, não seguia nenhuma simetria humana: um lado afundava mais que o outro, o nariz era apenas uma sugestão torta, e os olhos, dois botões antigos, pareciam sempre presos a um mesmo ponto do mundo, condenados a não piscar pela eternidade. Sobre a cabeça, sustentado mais pela teimosia do que pelo equilíbrio, repousava um chapéu pontiagudo, desses que as histórias juram pertencer a bruxas, inclinado como se também estivesse cansado de fingir que assustava alguém.

       O espantalho fora construído muitos anos antes, quando o “Homem de Chapéu de Palha” ainda caminhava com passos firmes entre as plantações. Dono da fazenda, caçador de mão cheia e olhar opaco orgulhoso, o homem possuía tantas terras quanto aqueles que o temiam. Os bichos sabiam disso. Sabiam pelo faro, pelo instinto e pelos relatos sussurrados no escuro hipnotizante da noite. Dentro de seu recinto — uma casa que parecia sempre mal iluminada, mesmo sob o sol — escutavam-se barulhos terríveis: quebras violentas, arranhões, pancadas que ecoavam como trovões. A escuridão de seu quarto não revelava nada, senão uma estranha sensação de observação e controle soberano e vigilante sobre tudo e todos; essa sensação transparecia no corpo dos animais como um frio que começava na ponta do estômago e subia devagar até virar um nó duro na garganta. Dona Ovelha, com sua lã farta, cor de nuvem limpa e olhos sempre atentos, raramente dormia inteira. Cochilava de forma fracionária, acordando assustada com qualquer ranger distante, vindos lá da casa, imaginando o que aquele homem poderia fazer se resolvesse atravessar a noite severina, tateando a pele fina de cada ser animal presente.

      O espantalho via tudo, ou melhor, ouvia. Ouvia os passos, o vento, os sussurros. Ouvia o medo circular como um bicho gigante e invisível entre as folhas. E ficava ali, anos a fio, guardião involuntário de um campo que não era seu, condenado à vigília imóvel. Às vezes, quando a brisa trazia algum bicho novo ao seu olhar, ele se sentia mais vivo e curioso sobre o lugarzinho em que estava condicionado a guardar para sempre. Todos os bichos temiam o terno espantalho, monstro espantosamente comum criado para seu único propósito: espantar.

      Foi numa dessas manhãs espantosas, quando ainda restava sol no recinto, que um belíssimo pardal pousou entre os milhos. Suas penas refletiam tons dourados e castanhos, e seus movimentos tinham uma elegância ímpar, quase como um belo. Bicou alguns grãos com rapidez e prazer, atento, mas nunca assustado. Quando alçou voo, o chapéu pontiagudo do espantalho, cansado de se equilibrar naquela cuca vazia, cedeu à gravidade e caiu no chão seco, sem fazer muito barulho.

      O espantalho sentiu. Não dor, mas ausência. Um frio estranho no topo da cabeça de palha. E, reunindo toda a coragem que anos de silêncio haviam acumulado, chamou:

— Ei, psiu, amiguinho alado. Desculpe-me o incômodo, você poderia, por favor, pegar o meu chapéu que caiu no chão? Eu prometo que não lhe farei mal algum.

       O pardal freou no ar e virou-se com uma elegância ímpar, incondicionalmente lindo. Inclinou a cabeça, analisando aquela figura imóvel que ousava falar.

— Claro que não teria medo, que bobagem ter medo de um projeto de homenzinho imóvel. E é claro que eu posso ajudá-lo, desde que não diga ao monstro da fazenda que eu ando beliscando seus deliciosos milhos. Aliás, eles não têm veneno, não é?

      Enquanto falava, o pardal já puxava o chapéu com o bico, erguendo-o com certo esforço até encaixá-lo novamente na cabeça do espantalho. Se pudesse, o espantalho choraria. Não de tristeza, mas por conta de um sentimento amigo crescente em seu peito, que ele veria incendiar bem mais depois. Ele não se sentiu ofendido. Pelo contrário. O pássaro não tivera sequer um pingo de medo dele. E mais: chamara seu criador de “monstro”.

      Era verdade que o espantalho não via o homem há muito tempo. O chapéu de palha humano não cruzava as searas da plantação como antes. Ainda assim, aquela palavra ficou ecoando entre as fibras de feno de sua cabeça, despertando uma curiosidade antiga sobre sua criação, quase antes esquecida.

— Mas o senhor disse… monstro? — perguntou, com cuidado, como quem pisa em solo de ovos de galinha.

— “Você disse”, por favor, pulemos as formalidades das primeiras conversas. E sim. Monstro. Pelo que observo de cima, ele alimenta os bichos e depois os m… ele os elimina sem remorso algum. Além disso, ele também machuca os da mesma espécie. Diferente de você, que só fica imóvel e, aliás, é bem mais gentil que o monstro é com suas companhias.

      O espantalho recebeu aquelas palavras como a terra absorve a chuva: lentamente, profundamente, enraizadas. Ficou ali, falando com o pardal por um longo tempo, trocando impressões como nunca tivera chance antes com qualquer outro ser presente na plantação. Contou, sem perceber, sobre seus dias iguais, sobre a solidão que não doía mais tanto assim, sobretudo quanto é detalhe, rendendo um bom papo para ambos os lados.

      Mais tarde, com o sol já laranja se preparando para o costumeiro descanso do fim de tarde, confessou seu único passatempo: imaginar frutiferamente como era os arredores do milharal enquanto sentia a brisa tocar seu corpo de palha. Disse que ouvia as conversas dos bichinhos, que aprendia o mundo pelo som, mas que jamais poderia se virar para ver o pôr do sol, olhar para cima para enxergar as incríveis estrelas que ouvira tanto sobre, ou a lua, nem tampouco caminhar pelo recinto que guardava. Falou disso sem nenhuma amargura, como quem descreve uma regra antiga demais para ser questionada. O pardal, pomposo e atento, deixou o silêncio se alongar por alguns segundos. Depois, compadecido por aquela humilde existência imóvel, prometeu voltar no dia seguinte para lhe mostrar uma surpresa.

     Na manhã seguinte, antes mesmo que o sol tivesse decidido sobre quem reinar naquela diferente manhã, o espantalho já percebeu algo diferente no ar. O vento soprava com alegria, onde bem cedo havia um bater de asas insistente, próximo demais para ser coincidência. Quando deu por si, o pardal já estava ali, pousado diante de seu rosto torto, saltitando como quem chega animado demais para aquela hora.

      Ele trazia algo pendurado no bico.

      Era um colar de flores silvestres, simples e feito às pressas, feito de pétalas pequenas, amassadas pelo voo apressado, ainda úmidas de orvalho. Havia tons brancos e lilases quase apagados, além de um imaginável cheiro doce que contrastava violentamente com o odor seco da palha velha.

      Os animais ao redor pararam. As galinhas esticaram o pescoço. Dona Ovelha ficou imóvel, com os olhos arregalados. Nunca, em todos aqueles anos, haviam visto o espantalho ser tratado como algo além de um serviçal silencioso.

     O pardal voou em círculos curtos até conseguir encaixar o colar no pescoço largo e desajeitado do espantalho. A flor escorregou um pouco para o lado, mas ficou ali, firme o suficiente para parecer que sempre pertencera àquele corpo desajeitado.

     O espantalho sentiu-se muito mais pomposo, como o pequeno pardal!

     Se tivesse pulmões, teria prendido o ar. Se tivesse olhos móveis, talvez piscasse para conter algo que ameaçava transbordar. Sua voz saiu, carregada de intenção e gratidão:

— Eu… eu não sei se você entende o que fez. Passei anos sendo apenas um espanto, um erro de madeira fincado no chão. Nunca fui presenteado. Nunca fui… lembrado. Essas flores… elas não são só flores. Elas me fazem sentir existente. Obrigado, amiguinho. Obrigado mesmo.

     O pardal inclinou a cabeça, satisfeito, como quem sabe que acertou em cheio, com orgulho e alegria maravilhosa.

— Ora, ora, veja só… um espantalho sentimental. Se eu soubesse, teria trazido dois colares!

     Eles riram. Ou quase isso. O riso do espantalho, pela primeira vez verdadeiro, soava como um balançar suave da palha, mas era sim um belo riso!

     A conversa seguiu, viva, saltando de assunto em assunto como o próprio pardal. O espantalho contou das cobras que às vezes surgiam entre os milhos, silenciosas e traiçoeiras. Contou como fora construído, jogado ali ainda torto, quando a plantação mal cobria o chão. Falou dos primeiros anos, quando o medo ainda não havia aprendido a morar naquele lugar infeliz.

— Naquela época — disse — o vento era menos pesado. Hoje ele carrega muito sofrimento animal e intenções ruins.

     O pardal, por sua vez, falou dos céus que já cortara, de lugares onde a comida era farta e de outros onde a fome reinava no reino dos homens. Falou de perdas, de fugas, de como aprendera que voar também cansa.

     Em certo momento, o pardal pousou sobre o ombro amigo do espantalho e retirou um grão de milho do chão, oferecendo com o bico:

— Quer?

— Não posso — respondeu o espantalho, quase constrangido por ter recusado. — Eu não como milho.

— Ué, mas você mora num milharal!

— Mas é que eu não como nada, na verdade.

     O pardal abriu as asas, dramático.

— Oh, meu Deus, que vida triste… nunca provará chocolate. Que “palha” você é.

— É paia, não palha — corrigiu o espantalho. — Palha já basta eu ser todo os dias.

      O pardal gargalhou, de maneira leve e genuína, que contagiou o local de alegria e amizade.

     Mais tarde, com o sol aquecendo a jaqueta velha, o pardal perguntou se poderia descansar ali. O espantalho aceitou de imediato. Havia um espaço esquecido dentro da jaqueta, um vão criado pelo império do tempo sobre todas as coisas. O pássaro entrou ali e se acomodou, fechando os olhos despretensiosamente. Parecia estar em casa.

     E então o espantalho compreendeu.

    Antes, fora guardião carrasco do milharal. Agora, era abrigo. Era refúgio. Era, sobretudo, amigo, grato amigo.

   Aquele sentimento o atravessou inteiro. Pequeno e imenso ao mesmo tempo. O mesmo que mães sentem ao segurar um filho, que irmãos sentem sem saber explicar uns pelos outros, que amigos antigos carregam nos trilhos da amizade. Algo que não se descreve, apenas se reconhece, se sente profundamente e gratamente.

   O frio chegou. E com ele, a despedida inevitável e precoce.

— Embora sua jaqueta se pareça com a jaqueta de couro do monstro — disse o pardal —, e embora você tenha sido feito para nos espantar, os animais têm mais medo do bicho humano do que de você. Obrigado pela companhia… amigo.

    Amigo.

    A palavra ainda ecoava quando o mundo explodiu na sua frente.

   O disparo rasgou o silêncio como um grito metálico contorcido. O espantalho sentiu seu corpo ser violado por um impacto seco e violento. Um buraco enorme se abriu em seu peito, exatamente onde o pardal dormia.

  O corpo do pássaro caiu, leve demais para a morte que carregava lentamente no vento. Os olhos, antes vivos e cheios de esperança, estavam vazios.

— Achei que fosse um bicho maior — murmurou com desprezo o homem, guardando o revólver.

  O espantalho reconheceu a voz. Se pudesse, teria gritado. Teria queimado toda a plantação e a si mesmo.

  Mas permaneceu imóvel, como sempre.

  A neve caiu, implacável como o inverso que com ela chegava ao campo. Os anos passaram. Outros pássaros vieram. Nenhum se espantou.

  Ele não era mais espantalho.

  Era apenas uma carcaça.

O verdadeiro sujeito espantoso estava ali, dentro do celeiro. Guardado em sua casa.