Eder Maurilio Soares

O Relógio da Carne

No centro do peito, onde o silêncio ecoa,

Existe uma máquina de ouro e de névoa.

Não é feita de aço, nem forjada em brasa,

Mas dita o ritmo da vida que passa.

Um círculo perfeito, de vinte e quatro horas,

Onde a alma desperta e o corpo evapora.

Ouve o tic-tac, martelo no estribo,

Cada segundo é um rei, cada minuto um arquivo.

À meia-noite em ponto, o pêndulo oscila,

O zero absoluto, a primeira pupila.

Nasce o infante no breu da engrenagem,

Sem saber que o tempo é uma longa viagem.

Das zero às seis, o tempo se arrasta,

Um sonho de leite em planície vasta.

Aqui, cada hora parece um milênio,

O mundo é gigante, o menino é pequeno.

O ponteiro dos segundos é lento e sutil,

Uma brisa suave num campo de anil.

Não há pressa no tic, nem medo no tac,

A vida é promessa, ainda intacta no saco.

Batem as seis, a alvorada desponta,

A juventude acorda e não faz a conta.

O relógio acelera, ganha força e vigor,

O sol sobe a escada, secando o suor.

Das oito às dez, a ambição devora,

Queremos o mundo, queremos agora!

O som da máquina torna-se forte,

Desafiando o destino, ignorando a sorte.

Corremos contra o mostrador de cristal,

Achando que a corda é, de fato, imortal.

O meio-dia se aproxima, o ápice da luz,

Carregamos o tempo como quem leva uma cruz,

Mas uma cruz leve, feita de plumas e glória,

Crentes que somos os donos da história.

Doze badaladas. O sol está a pino.

O homem maduro encara o destino.

Os dois ponteiros se beijam no topo,

É o cume da vida, o transbordar do copo.

Mas mal o sino termina o seu canto,

O ponteiro desce, coberto de espanto.

O tic-tac muda, fica mais grave e seco,

Como passos de ferro num longo beco.

Percebe-se agora, no auge da festa,

Que a descida é mais rápida que a subida da questa.

Das treze às dezoito, a tarde declina,

A máquina range, a vista neblina.

O que era \"futuro\" virou \"ontem\" depressa,

E a angústia do tempo aos poucos começa.

Olhamos o relógio com certo pavor:

\"Já são quatro da tarde? Onde foi o calor?\"

As engrenagens pesam, o óleo engrossa,

Cavamos memórias na nossa própria fossa.

Os filhos cresceram, o ponteiro girou,

Ouro virou bronze, o que era voo, pousou.

O ritmo é frenético, o tempo escorrega,

Como areia fina que a mão não nega.

Crepúsculo chega, dezenove horas,

O céu fica roxo, fecham-se as portas.

A velhice é a noite, serena e fria,

Onde se conta o lucro e a perda do dia.

O tic é saudade, o tac é adeus,

Conversas baixas entre o homem e seus deuses.

Vinte e uma, vinte e duas... o quarto escurece,

O corpo é o relógio que a alma esquece.

O pulsar do pulso imita o metal,

Buscando o silêncio do ponto final.

Vinte e três e cinquenta e nove, o fim do quadrante.

A vida inteira num sopro distante.

O ponteiro dos segundos dá a volta final,

Não há mais \"amanhã\" no mostrador principal.

O pêndulo para, suspenso no ar,

O tempo se quebra, volta a ser mar.

Zero horas.

O relógio reinicia, indiferente e exato.

Mas nós somos pó... E o tempo, o retrato.