SADE

O abismo

No ventre mofado da noite,
um rumor de cacos respira.
O mundo range, torto,
como se um animal enorme
mastigasse meus ossos por dentro.

Tudo fede a ferrugem antiga,
a grito que nunca saiu,
a sombra que nunca dormiu.

As paredes do peito
chiam, racham, irregular,
como se quisessem cuspir o coração
em qualquer esquina sem testemunhas.

Há um caos que come as bordas da mente,
um lodo tão espesso
que engole cada passo,
mas ainda assim caminho —
arrastando as unhas
na superfície do vazio,
rabiscando sinais que ninguém lê.

E mesmo no fundo do fundo,
onde o silêncio tem dentes,
algo insiste —
um fiapo de fúria ou respiração —
uma teimosa centelha imunda
que recusa o fim
e me lembra, rosnando,
que o abismo não manda em mim.