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Chico Lino

CORTEJO

CORTEJO
Chico Lino

Em tenra idade
Uma ninfa esvoaçante
Acariciou meu peito febril
Enquanto o sangue ardia

Outra vez
Quando o Rio Doce
Nadava em banho nu
Ouvi sussurros úmidos
Como alguém a me chamar

Não compreendi

Uma fresta na pedreira
No fundo d\'água
Impediu que eu fosse encantado

Passado o tempo já adulto
Só, na multidão
Ouvia Jorge Donn dançar
O Bolero de Ravel

Eram comemorações
Dos duzentos anos
Da Revolução Francesa
Na Praia do Flamengo

Tive vontade de ir à sua procura
Descer o Rio de Janeiro

Mas algum santo instinto
Pousou sua mão de pluma
Sobre a minha calma

Sei que me olhas
A todo instante

No trânsito
Quando caminho
Nas faixas de pedestres
Semáforos

Entre frestas nas festas
Onde a música
Cadencia o corpo
E a alegria envolve

Sinto por entre colunas
Seus olhos acompanhando o som
Por trás do reluzente carmim
Das cortinas

Com o tempo
Árvores plantadas
Filhos sobre os próprios pés
Livros editados

Não posso mais ignorar
Um encontro casual
Já marcado

O esquecimento
Invadirá as lembranças
Certamente

Com o peito apertado
Por pinturas de Botticelli
Descerei o Rio Doce Tocantins
Em algum lugar
 
Toras de jacarandá machetadas
Em peroba, madrepérola
Das escamas dos robalos

Serão líricos desenhos 
A adornar a jangada

Cardumes de piabas prateadas
A saltar sobre o cortejo

Diminuirão a intensidade do sol
Que ficou mais abrasivo

Lá vai a nau
Arrastada por camarões
Que eu catava na peneira

Vejo meu pai e minha mãe
Que preparam uma cama macia

Meus irmãos brincam ao redor

Sigo a olhar o nada na imensidão
De tudo que ficou

Fugindo às correntezas
Vou me postar fincado
Em alguma curva do rio
Que secou