Ano 200 O.L.
O sol já havia mergulhado há muito tempo nas pedras negras do Sancta Sedes. Na câmara subterrânea do conselho, onde nem o ar ousava vibrar, o Irmão Erem, Custode Veritatis, ajoelhava-se diante do Magnus Custos. Erem tinha apenas vinte e cinco anos, mas sua obediência era forjada no aço frio do dogma. Seus olhos, cinzentos e vazios de qualquer emoção, refletiam a luz bruxuleante da única vela. Ele era o exemplo da purificação: um corpo magro, sem a morbidez da Fundadora, mas com a mesma rigidez de propósito.
\"Irmão Erem,\" a voz do Magnus Custos era um sussurro de granito. \"O Conselho Obscurum detectou uma vibração. Um eco no sul. Nas Ruínas de Hyberna. Um texto antigo, da Lux Inversa, foi descoberto por... hereges.\"
A palavra \"hereges\" era proferida como se fosse uma praga. Hyberna era um espectro, o lembrete de que a vida, antes do Ordo, era feita de prazeres pagãos, filosofia e, pior, a celebração do corpo.
\"A missão é sua,\" continuou o Magnus Custos. \"Você deverá ir à Cidade Livre de Avelorn, um antro de escorpiões, e encontrar o \'fragmento\' antes que ele seja vendido para as bibliotecas proibidas de fora. Você irá destruí-lo. Não traga nada de volta. O que foi carne deve ser cinzas.\"
Erem tocou o peito, onde o juramento pesava como uma cota de malha invisível. \"A carne se fará silêncio. A luz prevalecerá.\"
\"Que assim seja,\" o Magnus Custos o dispensou com um aceno de sua mão ossuda. \"Erem, lembre-se do Voto de Véu: Silêncio absoluto. Abstinência de desejo. Isolamento dos próprios pensamentos e da carne do outro. Lá, o desejo andará à vista. Não se curve à fome que habita seus ossos.\"
Erem deixou a fortaleza na calada da noite, a mochila com pergaminhos e a navalha para raspar as escrituras sendo seu único conforto. A viagem até o sul foi um teste de abstinência e determinação, mas a verdadeira prova começou quando ele avistou o casario colorido e desordenado de Avelorn, a única cidade que se recusava a se dobrar aos decretos de pedra. Avelorn era o oposto de tudo o que ele conhecia: era barulhenta, cheirava a especiarias e, sobretudo, cheirava a vida.
Ele usava um manto de viajante comum, escondendo o custodes veritatis que era. Seguiu as instruções do Ordo até um mercado caótico, onde uma vendedora de antiguidades e textos apócrifos servia de contato não oficial. E foi ali que ele a viu.
Ela estava apoiada no parapeito de uma ponte sobre o canal, sob uma luz quente e aberta, contrastando com a escuridão que Erem carregava. Chamava-se Elara.
Ela era a encarnação de tudo que o Ordo lhe ensinou a temer. O rosto de Elara não era pálido, mas bronzeado pelo sol, e o cabelo escuro caía solto, sem a restrição do véu. Ela vestia uma blusa de algodão esvoaçante, de cor clara, que deixava os ombros desnudos. O riso dela era fácil e aberto, um som que Erem percebeu ser a primeira vez que ouvia algo tão genuinamente livre. Os olhos dela, escuros e profundos, brilhavam de uma forma que lembrava as brasas de uma fogueira.
Elara se inclinou, e a curva de seu pescoço foi um choque físico para Erem, um homem que passara a vida encarando apenas o chão de pedra. Ele não a encarava, mas sentia a presença dela como um calor.
\"Você é o monge,\" ela disse, sem perguntar. A voz dela não era o sussurro grave de uma penitente, mas um toque suave, quase musical.
Erem demorou a responder, quebrando o voto de silêncio. \"Eu sou Erem. Procuro por algo.\"
Elara sorriu, e o sorriso não era piedoso, mas malicioso. Ela sabia o que ele era e o que ele procurava. \"Você procura pela memória de Hyberna. Onde o prazer não era um pecado. Meu avô a encontrou. O texto... O corpo da história.\"
Ela o levou por ruelas sinuosas, o braço dela roçando levemente o seu. Erem sentia a diferença entre a pele dela e o áspero tecido de seu hábito. Aquele simples roçar era mais perturbador do que anos de auto-flagelação. O calor dela era a prova física de que o desejo existia, não como uma fantasia demoníaca, mas como uma realidade humana e convidativa.
\"O texto está seguro,\" ela murmurou, parando em frente a uma porta discreta. \"Você pode passar a noite aqui. Amanhã, ao amanhecer, eu o levarei às ruínas. Você vai querer tempo para ler e entender o que está destruindo.\"
Erem não podia recusar. Ele precisava do texto. Ele entrou no quarto. Era um espaço pequeno e simples, mas com cores vibrantes e um cheiro de frutas e incenso doce, totalmente diferente do odor de mofo e cinzas que ele respirava no Ordo. Elara acendeu uma lamparina.
\"Tire o manto,\" ela comandou, e ele obedeceu, hesitante. O manto caiu no chão, e ele ficou em sua túnica simples, expondo as cicatrizes em seus braços, vestígios de golpes anteriores.
Elara não perguntou. Ela apenas tocou a cicatriz mais antiga em seu antebraço. O toque dela era macio, uma suavidade que ele nunca havia sentido.
\"Você odeia tanto a si mesmo,\" ela disse, a voz quase um lamento.
\"Eu amo a Luz,\" ele respondeu, rouco.
\"A Luz que queima ou a Luz que ilumina?\" ela perguntou, recuando.
Ela se sentou na beirada da cama, desamarrando o cadarço que segurava a blusa em seus ombros. A peça escorregou, revelando uma pele lisa e bronzeada, sem as marcas de penitência. Erem sentiu um tremor percorrer seu corpo, uma sensação que não era de medo, mas de... avidez. Ele percebeu que nunca havia visto a pele de uma mulher adulta.
\"O Ordo te ensinou a odiar o toque,\" Elara sussurrou. \"Mas toque é som. É atrito. É a primeira verdade do mundo, que nasceu do roçar das primeiras bocas.\"
Ela se levantou e caminhou até ele, parando a centímetros de distância. Ele sentiu o perfume da pele dela, algo cítrico e vivo. Seus olhos se encontraram com os dela, e ele viu ali o reflexo de sua própria fome.
\"Eu não vou te tocar,\" ela prometeu, mas a promessa era uma mentira que ambos sabiam ser deliciosa. \"Mas vou te lembrar o que você se nega.\"
Elara levou o polegar à boca, umedecendo-o levemente, e depois, com a precisão de um torturador, tocou o lábio inferior de Erem. A umidade e o calor de seu toque eram um choque que percorreu seu corpo como um raio. O voto de abstinência, que ele havia mantido por toda a vida, rachou-se como cristal sob o peso de um martelo.
Ela não se afastou, mas manteve a pressão suave. A proximidade era a tortura, a prova de que a carne dele estava viva, pulsando. Os olhos de Erem se fecharam em agonia e prazer simultâneos. Ele podia sentir o cheiro do incenso, o cheiro dela, o calor do quarto, e o peso de sua própria desordem sagrada.
\"Você não é feito de pedra, Erem,\" ela murmurou, sua voz um arrepio. \"Você é feito de desejo.\"
Erem quebrou o Voto de Silêncio. \"Eu... eu não sou digno.\"
\"Digno de quê? De ser infeliz?\"
Elara finalmente se afastou. Ela se vestiu novamente e sorriu. O ataque havia terminado. O seu trabalho estava feito. \"Durma. Amante da Luz. Amanhã, teremos a escuridão das ruínas.\"
Erem mal dormiu. O cheiro de Elara permaneceu no ar, o toque dela em seus lábios. Ele era um homem quebrado, um Custode falho, um escravo da própria carne. O medo que ele sentia agora era ainda maior do que o medo do Magnus Custos.
Ao amanhecer, o ar em Avelorn era úmido e fresco. Erem e Elara caminharam juntos até as ruínas de Hyberna, um local abandonado, consumido por vinhas e silêncio. Cheirava a terra, pedra e uma antiguidade profunda, quase assustadora.
Elara o levou a um pequeno santuário subterrâneo. No centro, havia um único pergaminho, amarelado e delicado.
\"Aqui está,\" ela disse. \"O corpo da história. O Cântico da Fricção. O texto que ensina que o mundo nasceu do som, do atrito, do prazer. Não do silêncio.\"
Ela lhe entregou o pergaminho e se afastou, deixando-o sozinho.
O pergaminho era de uma caligrafia fluida, sensual, que celebrava o corpo e o toque. Erem começou a ler e sentiu que estava se afogando na heresia. O texto falava do ventre da mulher como o primeiro altar, da voz como a primeira música e do beijo como o primeiro juramento.
O Irmão Erem, o Custode Veritatis, deveria ter acendido imediatamente a chama. Ele levou a mão à sua mochila, tateando a navalha e o acendedor. Mas quando ele olhou para as palavras, a memória de Elara o atingiu como uma onda. Ele lembrou do calor do toque dela, do cheiro de sua pele, do som de sua risada.
Se ele destruísse o texto, destruiria a verdade do que havia acabado de sentir. Ele destruiria a prova de que ele era humano.
Erem sentou-se na pedra fria, o pergaminho nas mãos. A decisão não era sobre fé ou heresia. Era sobre vida e morte. A Ordo Lucis havia lhe prometido a vida eterna através da negação. Elara havia lhe mostrado a vida real através da aceitação.
Ele dobrou o pergaminho. Com a navalha, ele cortou uma pequena e discreta tira da borda do pergaminho, um pedaço minúsculo, talvez uma única frase ou palavra, e escondeu-a na bainha de sua túnica. O restante do Cântico da Fricção, ele depositou na pedra e acendeu. O fogo subiu, rápido e faminto. Erem observou as chamas consumirem o pergaminho.
Quando ele saiu das ruínas, Elara o esperava no limite da cidade. Ela viu a fumaça no horizonte e sorriu, um sorriso sem julgamento.
\"Você queimou a história,\" ela disse.
\"Eu fiz o que a Luz exigiu,\" Erem respondeu, a voz mais rouca que o sussurro do Magnus Custos.
Mas ele não tinha queimado tudo. A pequena tira de pergaminho, a memória do toque de Elara, e o calor da luxúria que ele havia sentido pela primeira vez, estavam guardados. Ele era agora um homem com dois votos: o Voto de Véu para o Ordo, e um novo juramento para si mesmo.
Ele era o Custode Veritatis. Mas ele também era um herege.
Ele deu as costas ao Ordo, ao Magnus Custos, à sua vida. Erem seguiu Elara para os becos de Avelorn, onde o desejo era a única fé permitida. Ele sabia que o fogo da Ordo o caçaria para sempre. Mas ele tinha provado o calor da vida, e agora, nem todo dogma do mundo o faria voltar ao frio do silêncio.