Então, aconteceu-me a vida.
Todos me avisaram que ela viria.
Vi nos rostos dos mais velhos que ela havia passado por eles; tinha deixado as provas de seus passos no rosto, nos lábios.
Ouvi todos os choros, todas as rezas, todos os coros.
E não é que veio?
Escancarou-me os olhos!
E estou agora de olhos abertos pela primeira vez.
A vida deu-me olhos e depois abriu-me os olhos.
Não me sinto nem desolada, nem miserável.
Surge-me algo novo entre a garganta e o ânus, e o meu confuso estômago se corrói em um movimento reverso.
Meus lábios já não se juntam à boca, pois percebem que nunca tiveram muita coisa a dizer.
E eu, com minha pouca força, tento murmurar um grunhido inumano, em uma língua que não me é natal, em um idioma que não é do meu povo.
A brutalidade do que é ser humano me escorre até os pés — a gravidade latente que suga a terra até o interior de um buraco negro é a mesma que me move a andar de quatro patas.
Percebo que tenho na boca alguns dentes bons e uma pele que cobre o meu corpo inteiro.
Grandezas invisíveis na pele.
O corpo tem peso.
Roupas, pelos, unhas, dedos, entranhas, saudades...
Conheço agora o humano.
O soco e o estômago.
Conheço agora de onde vem a carne, da minha carne.
Qual a cor que tem dentro do corpo, e que tem o peso do corpo.
E para onde vai a carne do corpo quando não há mais nada além do corpo.
O que me resta tentar?
Me arrasto… em penumbra, em luz caravaggio até uma pequena lata de água.
Levo os dedos à água.
Retorno ao rio onde banhei a infância.
Veja… de um rio a uma lata d\'água.
Como é pequeno o homem, como é covarde o homem, o que tem de Deus no homem é encontrar um rio, numa lata d\'água.
Então corro de volta à infância, onde não conhecia a inevitável condição humana, onde era mais, muito mais! Que humano.
Sinto-me como uma condenada que só depois de muitos anos percebe quantas décadas formam sua sentença.
Mas a paciência virá...
Sou e somo, agora, humanos!
E isto é alguma coisa, afinal.