Victória Bianca

Então, aconteceu-me a vida.

Então, aconteceu-me a vida.

 

Todos me avisaram que ela viria.

Vi nos rostos dos mais velhos que ela havia passado por eles; tinha deixado as provas de seus passos no rosto, nos lábios.

Ouvi todos os choros, todas as rezas, todos os coros.

 

E não é que veio?

Escancarou-me os olhos!

E estou agora de olhos abertos pela primeira vez.

A vida deu-me olhos e depois abriu-me os olhos.

 

Não me sinto nem desolada, nem miserável.

Surge-me algo novo entre a garganta e o ânus, e o meu confuso estômago se corrói em um movimento reverso.

Meus lábios já não se juntam à boca, pois percebem que nunca tiveram muita coisa a dizer.

 

E eu, com minha pouca força, tento murmurar um grunhido inumano, em uma língua que não me é natal, em um idioma que não é do meu povo.

A brutalidade do que é ser humano me escorre até os pés — a gravidade latente que suga a terra até o interior de um buraco negro é a mesma que me move a andar de quatro patas.

 

Percebo que tenho na boca alguns dentes bons e uma pele que cobre o meu corpo inteiro.

Grandezas invisíveis na pele.

O corpo tem peso.

Roupas, pelos, unhas, dedos, entranhas, saudades...

Conheço agora o humano.

O soco e o estômago. 

Conheço agora de onde vem a carne, da minha carne.

Qual a cor que tem dentro do corpo, e que tem o peso do corpo.

E para onde vai a carne do corpo quando não há mais nada além do corpo.

 

O que me resta tentar?

Me arrasto… em penumbra, em luz caravaggio até uma pequena lata de água.

Levo os dedos à água.

Retorno ao rio onde banhei a infância.

 

Veja… de um rio a uma lata d\'água.

Como é pequeno o homem, como é covarde o homem, o que tem de Deus no homem é encontrar um rio, numa lata d\'água.

 

Então corro de volta à infância, onde não conhecia a inevitável condição humana, onde era mais, muito mais! Que humano.

Sinto-me como uma condenada que só depois de muitos anos percebe quantas décadas formam sua sentença.

 

Mas a paciência virá...

 

Sou e somo, agora, humanos!

E isto é alguma coisa, afinal.