Ana Joquebede

Relicário de Ausências

Relicário de Ausências

Prosa de uma noite melancólica

...

Sinto-me sozinha, em meio a multidão de cegos e tolos, que jazem no moinho das carnes putrefatas.
Sou farol sem luz em costa de náufragos, espectro de um cais onde ninguém mais aporta.

As bocas se movem, engrenagens ocas, moendo o vento, cuspindo o pó do tempo.
E eu, estátua de sal, permaneço intacta, vendo os dias se dissolverem como salmos esquecidos.
Carrego em mim a arquitetura do abandono, catedrais submersas onde o silêncio é a única prece.

Cada rosto é um vitral quebrado, um mosaico de promessas que o tempo estilhaçou.
Meus passos ecoam no átrio do vazio, e as sombras dançam uma valsa fúnebre nos corredores da minha alma.
Sou a guardiã de um relicário de ausências, onde cada lembrança é um osso polido pela saudade.

O sol é uma ferida de ouro no céu, e a lua, um espelho turvo refletindo a minha palidez.
As árvores erguem seus braços esqueléticos, mendigando uma carícia que a brisa nunca traz.
E eu, neste banquete de existências anônimas, me alimento da fome, bebo da sede, enquanto o moinho gira, incansável, triturando a esperança até que dela reste apenas o pó.

À noite, só as estrelas me visitam, fiapos de luz em minha mortalha escura.
Dizem-me do amor, um corpo que respira ao meu lado, um nome que me chama.
Mas a luz de um astro morto, que viajou séculos para me encontrar, chega mais perto da minha pele que esse afeto, vasto e inabitado como a galáxia entre nós.