O corpo que ela carrega não é dela:
é um prédio antigo,
riscado de cálculos invisíveis,
ferro e silêncio sustentando a pele.
As mãos — vãos de escada —
onde guardou pregos enferrujados
e recibos de pecados vencidos.
O coração, uma laje vazada
com infiltração de promessas.
As veias, canos que rangem
a cada lembrança.
Caminha pelas ruas como se fossem colunas
que não pedem licença ao teto.
Sorri como quem descobre um erro de projeto
e o transforma em ornamento.
Não se importa com os aplausos.
O sarcasmo, ela guarda entre os dentes
como um caco de vidro —
discreto, mas pronto para cortar
as mãos dos distraídos.
Bebe pouco,
mas cada gole é um martelo
batendo no crânio.
Sabe que a poesia não salva:
serve apenas para medir o abismo
com uma fita métrica curta demais.
A vida, para ela,
é um canteiro de obras abandonado
onde pássaros fazem ninhos no cimento.
Ainda assim,
ela escreve plantas impossíveis
com linhas retas demais
para um mundo torto.
Se alguém lhe perguntar quem é,
responderá com ironia:
“Sou apenas um erro bem calculado”.