Descobri cedo
que remédio não cura só o corpo —
é amigo de fala séria,
que promete consertos em letras miúdas
mas deixa a alma de terno e sapato.
Aí veio o vinho,
alquimista de gargalhadas,
que em cada gole despeja feitiço,
me fazendo dançar com espelhos,
sem medo do ridículo nem do amanhã.
Quando ele entra,
minha memória vira rede de pescador —
larga, distraída,
deixa escapar boletos, culpas e senhas
como se nunca tivessem existido.
Meus critérios de beleza?
Derretem no fundo da taça:
o mundo vira desfile de possibilidades,
e eu, musa acidental de alguma boemia,
com cabelo de vendaval
e um sorriso bêbado de chocolate.
Minha mente, antes tartaruga em fila de banco,
vira falcão em voo torto —
capaz de rir antes da piada,
de chorar com o riso,
de entender tudo sem precisar das palavras.
Mas toda mágica tem custo:
o dia seguinte acorda com gosto de filosofia barata,
e a cabeça —
essa ex-câmara de ecos e coros —
volta ao modo avião:
silenciosa, miúda, arrependida.
Entre pílulas e brindes,
aprendo que viver
é equilibrar-se sobre a linha fina
entre o remédio e o delírio,
a dívida e o desvario,
a dor e o riso.
Por isso, brindo.
Não à perfeição da saúde,
mas à arte de esquecer com estilo,
à festa que dura o tempo de um gole,
e à lucidez de saber
que até a ressaca tem seu poema.