O Cachorro é um Traidor
– O Filhote da Névoa**
A bruma se arrastava suave pelas encostas das montanhas de Khüiten, onde o ar era fino e os pinheiros curvavam-se ao vento como velhos xamãs em oração. Em meio à neblina matinal, um filhote de lobo cinzento cambaleava atrás de sua mãe, os olhos ainda turvos, mas curiosos, absorvendo os primeiros contornos do mundo. Seu nome era Klesk, herdeiro do líder da matilha Dörvön Gal — os Quatro Ventos —, uma antiga linhagem de lobos que há gerações dominava aquelas terras gélidas.
Klesk nascera durante uma rara noite de lua azul. Os anciãos da matilha murmuravam que a lua havia selado seu destino com poder e maldição. Era um filhote robusto, de pelagem espessa e prateada como geada sobre pedra, e seus olhos, de um âmbar ardente, pareciam conter segredos de eras passadas.
Durante os primeiros meses, aprendeu com o pai, Tömörkhan, a farejar o vento, ouvir o silêncio e mover-se como sombra entre as árvores. Brincava com seu irmão Krivs e sua irmã menor, Tsagaana, fingindo caçadas, emboscadas e fugas. Sua mãe, Sarnai, era a guardiã dos caminhos antigos, e todas as noites, antes do sono, contava-lhes as histórias dos lobos celestes, que corriam entre as estrelas e protegiam os filhos da neve.
Mas havia algo em Klesk que era diferente — uma inquietação, uma fome que não era apenas por carne, mas por significado. Ele se afastava da matilha, observava os vales abaixo e sentia um chamado estranho, vindo das planícies onde os humanos andavam. Sua curiosidade, alimentada pelos contos proibidos sobre os homens, crescia a cada luar.
– O Grito de Krivs**
Certa manhã, ao fim do degelo, a matilha foi surpreendida por um som que nenhum deles ouvira antes: o estalo agudo do ferro mordendo a madeira. Era uma armadilha, colocada por homens das planícies. Os humanos haviam retornado à região, e com eles traziam cães adestrados, armas de pólvora e olhos famintos por peles raras.
Krivs, impetuoso e corajoso, foi o primeiro a farejar o rastro estranho deixado por uma cabra presa a um toco. O cheiro era bom demais, fácil demais. Antes que sua mãe pudesse adverti-lo, ele já corria em direção à isca.
O estalo da armadilha cortou o vale como um trovão. Klesk viu, em câmera lenta, os dentes de ferro se fecharem sobre a pata do irmão. O grito de dor de Krivs ecoou pela montanha. Sarnai correu em seu socorro, mas flechas assobiaram pelos céus. Um dos caçadores, um homem alto de barba trançada chamado Borchi, atirou uma rede sobre Sarnai e a afastou com chutes e gritos.
Krivs foi levado, arrastado no sangue e no medo, enquanto Klesk assistia impotente, escondido entre os arbustos, com o coração pulsando raiva e confusão. Os humanos haviam tocado sua alma. E ele não sabia o que fazer com o vazio que deixaram.
– A Queda de Klesk**
Duas luas se passaram, e o silêncio na matilha se tornara espesso como neve profunda. Tömörkhan enviara batedores em busca de Krivs, mas nenhum retornara com esperança. Klesk, consumido pela dor, seguia as pegadas dos homens em segredo.
Num entardecer enevoado, seguiu o rastro até um vale onde um acampamento se erguia. Cavalos mongóis, peles estendidas e cães presos por cordas. E ali, entre eles, viu algo que o fez gelar: Krivs. Magro, sujo, com um colar de ferro no pescoço, sendo alimentado por um jovem caçador chamado Altan, que sorria para ele como se fosse um brinquedo.
Klesk rosnou baixo, mas não avançou. Ficou ali, observando por horas. Foi quando ouviu o estouro de uma armadilha atrás de si. Tentou correr, mas a corda se enrolou em sua perna traseira. Gritou, se debateu, mas a dor e o cansaço venceram.
Borchi se aproximou com Altan e uma terceira figura — uma mulher de olhos gelados chamada Naran. “Este é maior… e mais feroz,” disse ela. “Será o cão alfa.”
– A Morte de Klesk, o Nascimento de Krevis
Aos poucos, o lobo deixou de ser lobo. Acordava com ordens, dormia com comandos. A cada desafio que vencia, um pedaço de sua essência selvagem era arrancado. Aprendeu a seguir a mão do homem, a farejar sob comando, a perseguir por instinto não próprio, mas moldado. O nome Klesk foi esquecido. Os humanos chamaram-no de Krevis.
Borchi usava o chicote, mas era Altan que moldava sua alma. Com ternura e paciência, ele lhe ensinava a confiar, a sentar, a caçar... mas não a pensar. Krevis se tornou o melhor cão rastreador de toda a Mongólia Ocidental. Os humanos se orgulhavam dele. Diziam que valia mais do que vinte cães.
E ainda assim, em noites de lua cheia, ele uivava em direção às montanhas, sentindo uma ausência que nem as caçadas mais gloriosas podiam preencher. Uma saudade que não sabia nomear.
– A Caçada Final**
Dois invernos se passaram. A neve retornara às montanhas, e com ela, a caçada mais cruel dos caçadores mongóis: o retorno à montanha Dörvön Gal. Borchi havia jurado exterminar a última matilha rebelde.
Krevis liderava a expedição. Seu focinho farejava com precisão os rastros deixados por sua antiga família. Um por um, ele levou os caçadores aos esconderijos: a velha toca sob o cedro partido, a caverna do eco, a clareira onde brincava com Tsagaana.
Tömörkhan caiu primeiro, emboscado por cães e lanças. Depois Sarnai, tentando fugir com Tsagaana. Krevis os viu morrer, mas não hesitou. Havia sido moldado para aquilo. Era o que sabia fazer.
Ao fim, restava apenas Tsagaana, escondida entre raízes. Quando Krevis a encontrou, ela olhou para ele com olhos de puro terror. “Klesk?”, sussurrou. Por um instante, a alma do lobo ressurgiu. Mas o assobio de Altan o trouxe de volta. Ele rosnou e avançou.
O último fio de sua linhagem se rompeu naquela noite. Krevis, o cão de caça, havia vencido. Klesk, o herdeiro dos Quatro Ventos, fora enterrado sob a neve.
Mas os ventos ainda uivavam por ele.
E nas estrelas, os lobos celestes choravam.