Jackson Daher

O ClichĂȘ

CLICHÊ

me disseram:
“o tempo cura tudo”
mas esquecer o feijão de vovó
ainda dói pra cacete às duas da manhã

“segue o coração”
e ele me levou direto pro buraco
sem mapa
sem volta
sem rede de segurança

eu ouvi:
“o que é teu, ninguém tira”
mentira
levaram o trampo
o trampo levou meu tempo
e o tempo me levou

“vai passar”
repete o espelho rachado
mas não diz quando
nem se eu vou tá inteiro depois

é clichê dizer que dói
é clichê dizer que passa
mas, mano,
é verdade.
e a verdade também repete
porque a vida é isso:
refrão batido
que a gente canta
com a garganta
rasgando
mas cantando


me disseram:
“quem muito se ausenta, uma hora deixa de fazer falta”
mas ninguém avisou
que eu ia sentir falta de gente
que se pá nunca me sentiu presente

falaram:
“dinheiro não traz felicidade”
mas eu só queria pagar o meu notebook
sem ter que parcelar a porra da paz em 12 vezes

ouvi também:
“depois da tempestade vem a bonança”
mas aqui chove faz meses
e a droga do guarda-chuva rasgou no meio da esperança

“a fila anda”
mas quem anda sem rumo
se perde no primeiro olhar que sorri errado

me falaram:
“se for pra ser, será”
e eu tô aqui esperando
essa porra de destino se mexer

mas olha,
eu continuo escrevendo
porque escrever ainda é mais barato que terapia
e rimar minha dor
é meu jeito de dizer:
“tô aqui, hein?”
mesmo quando ninguém pergunta


me disseram também:
“não guarda mágoa, isso faz mal”
mas ninguém me ensinou
onde é que se joga fora essa merda
sem entupir o peito

falaram:
“sorria mais, reclama menos”
mas o mundo não ouve quem cala
só respeita quem grita
e eu cansei de pedir desculpa
por sentir demais

me disseram pra ter fé
e eu tive
mas parece que deus
só responde a chamada de quem tem plano pós-pago

a real é:
tudo que me falaram
virou ruído
eu fiz poesia
porque é o único clichê
que ainda me respeita

e se rimar for crime,
me prende logo,
mas me escuta antes

porque o que eu cuspo no palco
não é verso bonito
é o grito de quem vive o feio
e ainda escreve bonito pra não enlouquecer