Madrugada,
teu silêncio volta a me visitar —
e eu, sem saber por quê,
me entrego outra vez à tua ausência calma.
As sombras que fui
já não gritam,
mas ainda sussurram
nos cantos frios da memória
um amor que talvez ainda pulsa,
quieto, escondido em mim.
Ah, se a vida fosse um livro,
eu abriria na página
onde o riso ainda morava,
e deixaria o tempo escorrer ali,
sem pressa, sem ponto final.
Mas a vida escreve em carne viva,
sem rascunho, sem edição.
Tenho receios.
Não do futuro,
mas das mudanças miúdas
que silenciosamente
nos afastam de nós mesmos.
Medo de deixar de ser quem sou,
de que até a madrugada
já não me reconheça.
E se eu amar de novo?
Nem sei.
Talvez já não saiba o caminho.
Trocamos promessas por silêncios,
palavras por inércia —
e tudo se perdeu na espera.
Mesmo assim,
os dias seguem
e eu sigo com eles.
Recolho os instantes,
aceito os sinais,
e guardo o que me ensina.
Um dia, saberei:
o que foi,
o que é,
o que ainda pode ser.
Mas se algo em mim não muda
é o teu olhar.
Mesmo que cem anos passem,
ele continuará em mim,
feito espelho antigo,
onde um dia
vi quem era —
ou quem pensei poder ser
ao teu lado.
Ou, talvez,
quem nunca fui.