Há dias em que a tarde se enrosca
no varal do tempo, e eu olho —
meio menino, meio velho —
a sombra de uma gargalhada que ficou
no canto da sala,
como se ali morasse um passarinho esquecido.
Sinto falta do teu riso.
Ele tinha qualquer coisa de brisa na janela,
essas coisas que vêm sem pedir licença
e vão embora sem fazer barulho.
Era um jeito de iluminar o silêncio,
de ensinar a vida a ser menos grave,
como quem afasta uma nuvem com a ponta dos dedos.
Há uma dignidade nesses risos francos,
despidos de cerimônia.
Eles atravessam a sala, tropeçam nos móveis,
e deixam no chão um rastro de alegria distraída,
como quem derrama vinho no tapete
numa festa onde ninguém tem pressa de ir embora.
Teu riso era farol
em noite de neblina,
era mapa antigo desenhado à mão,
era coragem de andar descalça
num mundo cheio de cacos.
E havia nele uma vontade de ser inteira,
sem pedir desculpa à vida,
sem medo do olhar dos outros.
É curioso: a gente passa tanta vida empilhando palavras,
mas às vezes basta o eco de uma risada —
essa coisa simples, quase banal —
para que tudo faça sentido por um instante.
Como se o segredo da felicidade
morasse apenas no descuido de ser,
no breve abraço daquilo que não se explica.
Talvez eu queira só isso:
caminhar ao teu lado,
sem muros nem armaduras,
brindando a cada instante
como quem celebra o improvável,
a beleza selvagem de existir.
E se um dia tua risada voltar,
te peço que não me avise.
Chega assim, de mansinho —
feito o sol atravessando a cortina fina do outono —
e me encontra distraído,
com a alma aberta
e o coração descalço.