Sezar Kosta

O CORPO INVENTADO

No avesso da noite, o mundo suspira,

um sussurro de sombra e desejo se estende.

Ela atravessa o limiar:

olhos — dois lagos de abril,

profundos de chuva e incerteza,

onde o tempo flutua, lento,

e tudo que é sólido se dissolve.

Seus lábios trazem a alvorada de uma promessa,

não há mel, não há veneno:

apenas o gosto daquilo que ainda não foi dito.

 

O quarto: um cosmo diminuto,

onde as paredes respiram segredos e as horas se alongam.

A pele dela é um campo de força,

quase palpável,

onde minha vontade se contorce,

peregrina,

convertida em desejo sem nome.

Cada toque inventa um idioma,

os dedos escrevem em minha pele

versos que só o silêncio lê.

Ali, entre o feixe de luz e o lençol amassado,

o corpo ganha uma geografia nova,

mapa de territórios nunca antes navegados.

 

Mas há um risco, uma vertigem,

uma linha tênue entre o voo e a queda.

O amor, ali, é feito de perguntas:

quanto do outro cabe em nós?

Quanto de nós se perde ao tocar o abismo do outro?

No brilho do olhar,

um instante de dúvida sobrevive,

e a entrega se faz travessia,

ponte entre o medo e a coragem,

suspensa sobre o vazio fértil do desconhecido.

Ser dois é se recriar:

perder-se para encontrar o outro

e, no encontro, perder toda certeza.

 

E quando tudo se cala,

resta o corpo inventado —

matéria viva da ausência e do toque,

nascido do breve,

mas com raízes fundas na memória.

Não há retorno ao antes:

somos criaturas do encontro,

filhos daquilo que ousamos sentir.

No espaço entre a respiração e o grito,

descubro:

o amor não é promessa, nem veneno,

é invenção —

um instante onde o mundo recomeça

com a força delicada

do desejo que se sabe

infinito

e mortal.