.Ykaro

A fome.

CAPÍTULO I

Angústia

 

 

Mantinha-se concentrado. O ato necessitava de agilidade e persistência; seus pés começavam a coçar de ficar nessa posição. Cercado, em poucos metros quadrados, o galinheiro, com no máximo seis galinhas.
O indivíduo é jovem, parda a cor da pele, unhas sujas e barbado para a idade. Vestia-se humildemente — poucas opções desde sempre — então fazia bom uso delas: se rasgava, ele mesmo costurava em farrapos. Ergueu os braços, puxando a manga da blusa, preparando-se para pegar uma pelo pescoço.
Aproximadamente há dez minutos estava na mesma posição. Sabia que as galinhas sentiam sua presença ali, portanto corriam pelo pouco espaço que tinham.
Era caseiro desse pequeno terreno. Região Centro-Oeste do país, ar seco e poeirento, mas lindo era o cerrado à sua volta. Sabe que é pobre, e o pior é que a tragédia de sua existência, que Deus o deu, não mudará. Eram tão desinformados, tão isolados, que a única pessoa ainda viva que sabia escrever, ler e docentar era sua madrinha — a mandante que o designou para tal tarefa.
Intrigava-se como sua tia escrevia. Nunca foi bom de ler, e a letra dela, apesar de visualmente bonita, era muito rebuscada.
Moravam ali apenas os dois. Os senhores do terreno vinham apenas nas férias de julho. Sabia disso sempre quando o pequizeiro floria — presentemente mais bonito que no ano passado.
Ensinou-o a escrever seu nome, contava-lhe histórias de família — ensinava-lhe o certo e o errado, a pintar e desenhar. Porém, nunca o ensinou a cozinhar. Mostrava arrependimento sempre quando levava uma vaca ao abatedouro ou se matava uma galinha; sempre dizia que temperava bem a carne para que o gosto da culpa não resumisse a angústia e a tristeza.
Indagou o motivo de ela não estar presente consigo nesse momento para ensiná-lo.
Com bravura e destreza — pegou o animal.
O susto quando sentiu, em suas mãos, a carne do pescoço, com o arranhar das penas em seus dedos, a vertigem que sentia era a mesma do animal. Sentia o balançar do corpo, o vento que o bater das asas provocava, o socava com desespero; queria muito soltar. Como um ser consciente, como ele, poderia fazer mal a outro tão inocente?
Sua tarefa não era apenas capturar, mas sim matar. Tarefa complicada até para um poeta escrever, mesmo não sendo um — era mais ainda. Colocou seu polegar na cabeça da galinha. Fez tanta força que ela gritou de desespero — sufocar era uma morte cruel. Tentou torcer o pescoço. Grunhiu tão alto que as galinhas no galinheiro começaram a pular. Cada vez que chegava perto, a galinha mostrava como queria viver. Pensou em bater contra o chão — muito doloroso. Pensou em buscar um facão e, ao mesmo tempo, se recusou.
Escolher a morte da galinha como justificativa — sua fome — não lhe era um ato plausível.
Ao invés de imaginar o animal feliz, ou matá-lo e temperá-lo, por que não viver com ele? Intuitivamente, não quis colocar a sua tragédia na tragédia da galinha. A indiferença da sua fome não deve sobrepor a da galinha, do mesmo modo que a fome sobrepõe a ele mesmo.
Soltou-a. Correu assustada. Tinha acabado de perder uma galinha; tinha uma certeza — não ia colocá-la de novo no galinheiro. Libertou todas as outras.
A poeira subiu com o correr delas, o som das unhas arranhando os seixos rolados do chão — que culminavam em um afluente de caminhos pelo terreno. Sentiu-se o ser mais impotente do local; não por covardia, mas por muita coragem.
As galinhas corriam para os estábulos dos cavalos, os chiqueiros dos porcos, chegando no pasto das vacas. Ciente disso, as visitas não terão o que comer. Sentir o gosto do açafrão junto com o arroz solto vale a vida da galinha? Sua barriga roncou; em décimos de segundo se pôs a pensar no que diria para sua madrinha quando voltasse para casa.
Sentia que ela o entenderia — talvez até demais. Nunca passou a mão em sua cabeça desde que sua mãe morreu, onde se sabe por alguma “niose” ou “ssomose”. Madrinha tomou posse do menino — porém, sempre que errava, não o castigava, apesar de haver chicotes e palmatórias em casa; não sabe o motivo delas, porém estão bem guardadas.
Esfregou o rosto, sentiu a poeira nas bochechas e nas mãos, coçou o maxilar, sentiu os pelos arranhando as unhas; suspirou.
No sentido contrário ao correr das galinhas, meteu o pé na estradinha de chão que levava para a casa. Era ao norte do terreno — depois dela, tinha apenas a porteira. O chinelo, pregado com pregos, arrastava a sola a cada passo. Junto com o barulho da ventania, da fauna e da flora que cantavam, seguiam no afluente que daria na margem de sua futura angústia. Sua mente pairava entre a idealização da intenção e a consequência utilitária que fez.
Se via novamente encurralado, começando a ver um ciclo interminável que começa e termina em vertigem. Ora a angústia se torna paz, em um único período de tempo estático no universo; logo, rapidamente, vê-se angustiado novamente.
A imagem da casa já tomava forma — em sua visão, apenas um borrão azul em seu formato. Todas as janelas feitas de madeira — presentemente abertas para a iluminação; precisava-se economizar velas.
Frente à porta, já era possível ver as falhas no reboco e também que o chão de fora é o mesmo do de dentro; segue seu destino com mente unicamente pertencente ao acaso.
— Madrinha! — gritou.
Pensou em mentir, para aliviar sua barra com sua tia, porém afirmou que não conseguiria formular nada agora.
— Madrinha! — gritou, virando para a esquerda, entrando na cozinha.
Viu um forno a lenha, com panelas de cerâmica pura; recém-ligado — talvez tentaram ligá-lo, pois dele tinha apenas brasa. Ergueu a tampa das panelas. Tinha arroz e feijão em água ainda não fervente; fechou-as.
— Mainha! Tu deixou o arroz no fogo. — Sabia que não esquentaria o arroz, muito menos queimaria com aquela brasa pequena. Era desculpa para chamá-la.
Não obteve resposta, logo saiu para averiguar os cômodos — apenas dois no andar de baixo.
Na escada que leva para cima, no seu fim apenas se via breu — nenhuma janela aberta e o que lhe parecia era nenhuma iluminação de vela também. Voltou à cozinha e buscou uma vela, já usada várias vezes pela família; acendeu no fogo do forno. Com as mãos sobre a chama, para que não se apagasse, seus pés conduziam com cuidado para a escada de madeira.
Colocou primeiro o direito e depois o esquerdo — nessa ordem. As madeiras, marteladas pelo seu peso, choravam pequenos grunhidos. Rugia seu coração a cada passo. Inocente, terminou de subir, se colocando agora em um pequeno corredor; uma porta à direita e, na frente dela, uma à esquerda.
A da direita era seu quarto; entrou e se distraiu com algumas coisas — esqueceu de arrumar a cama e guardar os sapatos. Ela não estava ali.
Por conseguinte, escutou a mesma mágoa da madeira no quarto em frente, porém no teto. Cogitou abrir a porta; pensou que ela queria privacidade — talvez estivesse orando, louvando ou dormindo. Bateu na porta três vezes e abriu.
Abriu devagar — silenciosamente cochichou:
— Madrinha…
A luz amarela da vela não iluminava o cômodo todo; lembrou que ela orava agachada, com os cotovelos sobre a cama. Olhando para o chão, esperava encontrar os pés juntos sobre o chão de madeira. Porém, estavam suspensos no ar, em cima da cama.
Ao ver a cena, assustou-se. Cada vez que chegava perto, a iluminação mostrava-lhe o que era, para si, o inimaginável. Vindo do teto, mantendo um corpo suspenso, uma corda que arranhava a madeira em seu topo e asfixiava sua madrinha em seu fim.
O único movimento era o da corda. Ele, diferentemente, estava paralisado. Porém, sua barriga lamenta a perda, roncando.
Depois de um tempo suspenso no tempo — e ela no ar — decide retirá-la daquele ato misterioso, que nunca havia pensado. Estava de costas para ele — não viu os olhos cinza, vazios; apenas as olheiras de alguém que já viveu, porém sem um brilho sequer. Foi por vontade de viver dignamente ou por cansaço existencial?
Com um banco — que outrora fora utilizado por ela — deitado na cama, levanta-o e sobe nele. Apesar de ser baixo, com a altura da vela — consegue passar o calor do pavio para a corda.
Não sabia o que esperar. O corpo caiu com tudo na cama — estrondo que ecoou na sua mente e coração. Com pouca destreza, sem ter onde se escorar, caiu em cima dela. Um corpo frio. Com a queda, a vela se apagou e o breu o consumia.
Com passos calmos, vai em direção à janela do quarto. Abrindo-a com o sol do meio-dia, iluminou o cômodo. Viu, pela primeira vez, o semblante desgraçado de alguém por quem sentia muito apreço.
Não se usavam vírgulas, parênteses ou aspas; o certo não havia sentido. A natureza matou-a? Ou ele matou? Ou os dois? Descritivamente, antes era um ponto e vírgula, agora, apenas um ponto em um parágrafo na sua vida.