opoetatardio
Quem Viu a Rosa?
Ao meu redor, a alvorada se desponta como uma sinfonia de cores e movimentos. O sol nascente acaricia-me com dedos de luz, enquanto a brisa matinal dança entre as folhas, sussurrando poemas em línguas ancestrais. O murmúrio da natureza envolve tudo em um abraço acolhedor: pássaros trocam melodias nos galhos próximos, borboletas flutuam como fragmentos de sonho, e um beija-flor me visita, vibrando no ar como um sopro de vida. Minhas pétalas ainda guardam as gotas do sereno da madrugada, testemunhas silenciosas de um renascimento diário.
Por um breve momento, sou apenas eu e o mundo. O silêncio não é ausência, mas presença. Sinto-o como uma carícia do universo, algo que se estende até o âmago do meu ser. O toque do vento não só roça minha superfície, mas penetra minha essência. Sou parte deste todo, e o todo é parte de mim. Cada partícula de ar que desliza por minhas folhas sussurra segredos indecifráveis, e, ainda assim, plenos de significado. Aqui, no delicado equilíbrio entre a existência e a finitude, sei que existo.
Uma joaninha atrevida escala meu caule e repousa sob uma de minhas pétalas. Seu toque, ínfimo e preciso, confirma-me: sou real.
Mas então, o mundo dos homens invade o meu.
Uma família sai apressada de casa, imersa pela urgência da modernidade. O homem caminha à frente, os fones de ouvido abafando o mundo ao seu redor, alheio até ao som de sua própria respiração. A mulher, imersa em um podcast sobre mindfulness, ajusta o celular sem perceber a contradição entre a reflexão que escuta e o ritmo acelerado de seus passos. A criança, com os olhos fixos no aparelho, mal percebe por onde anda. Tropeça, endireita os óculos e ajeita a mochila, encurvado parece carregar o peso de um ano inteiro de estudos. Têm pressa. Olham, mas não veem. Para eles, sou apenas um detalhe esquecido na paisagem.
Então, algo acontece. Seria finalmente notada?
A mulher para, vira-se, toca o ombro do marido e exclama:
— Olha isso!
A criança também para, mas sequer me olha, permanecendo perdida em uma realidade que não é a sua.
A rotina é interrompida. O homem volta e se agacha diante de mim, os olhos rápidos, ávidos por capturar algo que transcende a simples visão.
Crick! O estalo seco da câmera irrompe no silêncio, traduzindo a urgência do momento. Uma cópia minha é sugada para dentro da tela, mas não me contém.
— De frente fica melhor, amor — sugere a mulher.
Crick! Outra fotografia.
Permaneço quase imóvel. Minhas pétalas tremulam levemente ao toque do vento, respiram. O orvalho brilha sobre mim, hesitante em evaporar, resistindo à efemeridade de sua existência.
O homem entra em ação novamente, desta vez gravando um vídeo, narrando com entusiasmo:
— Olha que coisa linda! Natureza pura! O orvalho brilhando, perfeito! E a rosa, meu Deus, tão vibrante! Dá até para sentir a paz desse momento, né? O orvalho escorrendo pelas pétalas, refletindo a luz...
Enquanto fala, sua preocupação está em ajustar o celular, enquadrar a cena, garantir a iluminação ideal. Ele busca registrar a beleza ao seu redor, mas mal percebe a magia do instante. Em seu olhar, o mundo se resume à tela, e não ao que está diante de seus olhos.
Agora é a vez da mulher entrar em ação. Ela chama o marido e o filho para um selfie. O homem se apressa ao lado dela, ajeita o cabelo com um gesto rápido e automático, verificando, de relance, seu reflexo na tela do aparelho. O garoto, ainda segurando o celular, franze a testa ao perceber que terá que interromper o jogo. Solta um suspiro pesado, irritado. Seus dedos hesitam por um instante antes de bloquear a tela, como se lamentasse o tempo perdido.
— Mãe, sério? — resmunga, sem disfarçar o descontentamento.
Ela não responde, apenas lança-lhe um olhar firme, impaciente. O garoto revira os olhos, quase imperceptivelmente, mas o suficiente para demonstrar sua contrariedade. Move-se devagar, arrastando os pés em um pequeno ato de resistência silenciosa.
Ele chega perto da mãe, ainda segurando o celular com força, como se estivesse pronto para voltar ao jogo no segundo seguinte. No último instante, se alinha entre os pais antes do clique, levanta a mão e faz um \"V\" com os dedos, um gesto mecânico e desinteressado. Seu rosto carrega uma expressão forçada, um meio sorriso forçado, como quem quer acabar logo com aquilo.
Crick! O clique da câmera sela sua rendição momentânea.
Mal a foto é tirada, ele já abaixa a mão e desbloqueia a tela do dispositivo de volta ao jogo, como se nada tivesse acontecido.
A mulher desliza os dedos pela tela, afinando contrastes, realçando as cores. Meu vermelho torna-se mais intenso, saturado até parecer irreal. Em segundos, o real e o virtual já não se reconhecem mais.
A legenda surge: “A vida é feita de escolhas ??? #BelezaSimples #Gratidão #BomDiaComFlores #NaturezaPresenteDeDeus”.
Um toque na tela. Publicado.
O homem recoloca os fones, a mulher retoma o podcast, e o garoto, de ombros curvados sob o peso da mochila, segue com os pais. Entram no carro e partem, imersos em suas próprias distrações digitais. Os sorrisos que exibiram durante as fotos para as redes sociais se desfizeram.
E então percebo: não fui admirada, fui registrada. Não toquei seus olhos, tampouco suas memórias. Tornei-me apenas uma fotografia replicada em servidores distantes, onde meu perfume jamais será sentido, reduzida a um fragmento de algoritmo.
Minha fotografia, não eu, será curtida, compartilhada, esquecida.
E eu? Meu ciclo se completará no silêncio, dissolvendo-se no tempo. Porque, no fim, nenhum de nós foi feito para a eternidade, mas para sermos sentidos.
E eu fui apenas vista.
Pedro Trajano
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