SM Lino

O Andarilho de Paris*

O Andarilho de Paris*

Era maio, e como em outros anos, ele surgia nas ruas de Paris. Sentado em alguma praça ou esgueirando-se pelos calçadões, o andarilho era uma figura enigmática. Para os mais atentos, parecia um fantasma ou um viajante do tempo. Para os transeuntes apressados, não passava de um maltrapilho, vestindo roupas de um tempo que já se foi: um paletó de três peças marrom, camisa de gola alta e rígida, sapatos pretos com botões e, sempre, uma flor no bolso do colete.

Seu semblante, ora feliz, ora triste, tornava-o ainda mais misterioso. Qual seria sua história? 

Aqueles que ousavam perguntar sobre o que havia acontecido com ele indagavam  e, ao olhar, viam apenas uma expressão vazia, como se ele não estivesse  ali. Sua presença parecia desaparecer, como se fosse uma aparição, deixando apenas o silêncio.

    Sua existência era questionável,  seria ele apenas uma sombra, algo que se perdeu no tempo e a morte não deu conta ?

Henriette Nursery, um jovem francês, estava em uma festa nas ruas de Paris durante as primeiras exibições da história cinematográfica. A sociedade parisiense fervilhava de entusiasmo. Ele observava, ávido e perplexo, as obras de arte, bijuterias, louças e livros expostos em estandes montados em um galpão que podia abrigar cerca de mil e duzentas pessoas.

Uma apresentação teatral sensacional de “boulevard”, estrelada por Sarah Bernhardt, a grande atriz da Belle Époque, arrancava gargalhadas descontroladas de Henriette. Foi então que ele a viu: Mademoiselle Louise. Seus olhos se encontraram, e o mundo parecia ter parado.

Louise era deslumbrante. Seu rosto rosado brilhava sob a luz do sol que escapava de seu chapéu, e seu vestido azul refletia sua beleza como um espelho. Henriette não conseguia desviar o olhar.

— Você gosta de teatro? — perguntou Henriette, aproximando-se dela.

— Adoro — respondeu Louise, com um sorriso que iluminou o ambiente. — E você?

— Eu também. Mas hoje, parece que encontrei algo ainda mais fascinante.

Louise corou, e os dois passaram a noite conversando sobre suas vidas, sonhos e paixões.

Ao cair da noite, enquanto o tempo, traidor dos amantes, parecia acelerar, ambos sorriam e se divertiam. Quando se despediram, trocaram o beijo mais doce que o universo de Louise e Henriette já havia conhecido. Olhando em seus olhos, ele a convidou para o cinema no dia seguinte.

— Sortie de l’usine Lumière à Lyon — disse Henriette. — Uma produção dos irmãos Lumière. Combinamos de nos encontrar na primeira fila.

Louise acordou radiante na manhã seguinte. Era impossível não sentir que sua vida estava finalmente tomando um rumo.

Após uma infância em uma aldeia francesa, onde se sentia insignificante diante de tantas mudanças no mundo, ela sempre buscou algo mais. Na escola, se encantou com as literaturas de \"Colette\", e via nos livros uma visão de ser mulher moderna e diferente. Ao contrário das suas amigas, que sonhavam com o casamento e a vida de socialite, Louise queria uma família, sim, mas também queria viver, sentir e participar da construção de sua vida ao lado de um parceiro que a entendesse.

Os romances da série \"Claudine\" a inspiraram profundamente: uma mulher forte e independente, ao lado de um marido que a respeitava. Era esse o modelo que ela queria para si mesma. 

Depois do café, ela decidiu sair para caminhar, ainda pensativa, refletindo sobre sua vida e o caminho que estava tomando. E, enquanto caminhava, se perguntava: Será que Henriette quer alguém como a Claudine?

Sentado em frente ao espelho, Henriette se lembrou de sua avó, Louise Michel, era  o mesmo nome da garota que acabara de conhecer, abriu a gaveta à sua frente e retirou um envelope. Era de sua avó. Havia escrito para a família, antes de partir para lutar nas ruas após a guerra franco-prussiana. Ela era uma revolucionária, uma heroína para ele, e ali estava a última mensagem de amor dela.

Louise Michel havia sido guerreira e deixou a família para lutar por uma causa Nobre e sua mãe fugira para escapar da morte, deixando-o sem o amor materno que tanto precisava. Diante do espelho prometeu recuperar o tempo perdido e, de alguma forma, mostrar a Louise o que ele entendia por amor. Queria que ela soubesse o quanto a família dele fora importante, e a força que ele desejava passar para ela.

Ansiosa, Louise chegou cedo ao cinema. Assistiu ao final de uma sessão anterior, toda perfumada, com um vestido branco de detalhes dourados bordados e corte longo. Sempre olhando para a entrada, suspirava, cheia de planos para aquele dia mágico.

Henriette, vestindo um paletó, colete e calças de corte reto marrom, camisa branca e sapatos de couro preto, com um relógio de bolso dourado, comprou flores no caminho. Assobiava, lembrando do beijo, e ensaiava um pedido de namoro.

Quando subia pela Rue Jean-Goujon, ouviu gritos. Correu e viu fumaça, desespero, fogo. Apressou-se e, atônito, viu pessoas em chamas saindo do galpão. Em segundos, tudo desabou em meio às famintas chamas.

Relatos deram conta de que o éter, usado para alimentar os equipamentos cinematográficos, havia caído. O ajudante, no escuro, sem saber o que ocorrera, riscou um fósforo para enxergar.

Henriette nunca mais viu Louise, que sucumbira naquele fatídico 4 de maio. Ele, agora um andarilho errante, não saiu mais das ruas de Paris. Colocou a flor no bolso do colete, sorria ao lembrar dos cabelos e olhos vivos de Louise, mas logo chorava, dias e dias entristecido e preso ao sofrimento, sentindo a falta dela.

Para os poetas, Henriette representa o amante lançado à sorte, quando correspondido, a morte pode abruptamente trazer a ruptura fatal.

O andarilho, solitário, permanece a olhar os beijos nas praças, a enamorar a beleza que passa, beijando a flor que continua a atravessar a fronteira do tempo. Mas o choro é o que prevalece.

Anos depois, em uma manhã fria de maio, o andarilho encontrou um pequeno broche no chão, perto do local do incêndio. Era um broche azul, com detalhes dourados, que ele reconheceu imediatamente. Era de Louise. Segurando-o em suas mãos trêmulas, ele sentiu uma paz que há muito não conhecia. Finalmente, ele poderia descansar, sabendo que, de alguma forma, Louise ainda estava com ele.