O reconhecimento de que a pobreza é um fenômeno que ganha forma, percepção e significados a partir das relações sociais, consequentemente no seu estudo destacamos o modelo econômico existente em uma determinada sociedade, as práticas de apropriação dos recursos naturais, a distribuição dos resultados do trabalho e as representações historicamente construídas a respeito dos pobres. Ela, a pobreza, é um fenômeno relacional, na medida em que a sua existência é produto de relações entre grupos humanos, instituições sociais, ambiente natural, elementos culturais e saberes técnicos. A pobreza é um elemento presente e também indesejável pressionando as áreas urbanas das cidades.
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Laura nasceu em uma família pobre. Ela vivia com sua mãe e sem muitas ilusões. Eram dias difíceis, diante de um quadro social sem perspectivas. Ana, a mãe de Laura, não tinha marido, não tinha moradia própria, não tinha acesso ao trabalho remunerado e tinha cinco filhos para sustentar. Achava-se em estado de extrema pobreza, sem recursos de espécie alguma para atender a sua subsistência e de seus filhos. Ana usava múltiplos expedientes nas ruas paulistas para tirar o sustento para seus filhos, diante da ausência de um trabalho formal.
Sua casa, desprovida de forros, o chão era atijolado e as paredes rebocadas e caiadas, ou seja, tratava-se de um cortiço. Estava situada no arrabalde da cidade, sendo uma estrutura simples, com fossa no quintal, por não possuir serviços de esgotos. O consumo da água era realizado a partir de um poço no quintal, ou seja, não tinham acesso a serviços básicos como abastecimento de água, rede de esgoto e iluminação elétrica.
Laura era uma menina frágil. Dos cinco filhos, era a irmã mais velha. Ela ajudava a cuidar dos irmãos menores. Estudava. Todas as crianças estudavam, até porque a sua mãe não tinha com quem deixar os filhos e sair para trabalhar. Outro aspecto importante é que a escola oferecia café da manhã, almoço e, na metade da tarde, um café reforçado para as crianças. Esse café reforçado, muitas vezes, era a janta dos filhos de Ana.
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Ana tinha uma irmã, que não morava na mesma cidade. Eventualmente se comunicavam através de cartas. Essa irmã, Eliza, levava uma vida menos estressante, embora não fosse possuidora de patrimônios, vivia de pensão do ex-marido e de alguns de algum dinheiro que obtinha fazendo tortas de salgados para vender. Seu marido, João, ex-militar, falecera e ela, sem filhos, morava sozinha e, desde a morte do marido, se sentia muito solitária.
Eliza, sabendo das dificuldades da irmã, sempre comentava com Ana, a possibilidade de levar a Laura para viver com ela. Isso era só um sonho, pois dependia do consentimento do marido, quando vivo, e da aceitação da irmã. Ela nem mesmo havia discutido esse assunto com o ex-marido com muito afinco. Acalentou esse sonho com reservas e solidão. Após a morte do João, pôs em prática seu desejo e escreveu imediatamente para a irmã, comunicando-lhe o seu desejo. Laura se mostrou, a princípio, reticente, mesmo sabedora das dificuldades que passava em casa com os filhos.
Num dado final de semana, Eliza foi visitar a irmã. Encontrou-a em um domingo em casa com os filhos. Percebeu que a situação social da irmã estava se deteriorando. Abraçou os sobrinhos e tratou de comprar pão, leite, manteiga e frutas, para tomarem um café da manhã reforçado. Foi uma festa, um turbilhão de emoções.
Conversaram muito sobre a tutela da Laura. Ana ponderou muito sobre a importância da Laura dentro de casa para ajudá-la, mas Eliza ponderou que poderia dar melhor condição de vida para a sobrinha. Tanto Eliza quanto Ana sabiam que a Laura gostava muito da tia e a convivência entre as duas seria fraternal e ela viveria em um ambiente seguro, distante destes conflitos do local atual de moradia. Depois de muita conversa e convencimento, Ana aceitou entregar a filha para a irmã.
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A casa de Eliza era pequena, mas bem cuidada e limpa. O pequeno jardim na frente merecia cuidados e, no pequeno quintal, aos fundos, cresciam diversos tipos de temperos que ela usava para cozinhar no dia a dia. A sala resplandecia à larga claridade de duas janelas e uma porta abrindo para a parte frontal da casa. Tinha dois quartos e um deles seria usado pela Laura.
Um rumor cresceu no interior da casa de Eliza, surgindo, de repente, naquele corpo vivo, de uma menina mudada em seu aspecto físico. Ganhou vivacidade e um sorriso amplo, bonitos olhos pretos. Laura mostrava resplendor em sua felicidade. Eliza estava feliz em companhia da sua sobrinha...
Aos poucos Laura foi aprendendo os hábitos da casa. Levantava cedo e ia para o colégio. Estudava toda a manhã. Chegava em casa, tirava a roupa de escola e almoçava com sua tia. Depois lava os pratos, arrumava a cozinha e conversava com a sua tia que lhe cobrava informações sobre as atividades na escola.
Assim, a vida foi passando em uma harmoniosa relação. Laura gostava de ajudar e observar sua tia fazendo os salgados e doces para vender. Eram encomendas para aniversários, casamentos ou outros eventos em que ela era contratada para fazer seus quitutes já famosos. Com isso Laura foi tomando gosto pela cozinha e sua tia observa o desenvolvimento da sobrinha nessas lidas.
Eliza ficou sabendo de um curso de culinária na cidade. Esse curso seria grátis e de curta duração. Elisa comentou com a sobrinha que gostou muito da ideia de fazê-lo e passou a perguntar frequentemente pelo curso a sua tia.
Quando as inscrições foram abertas, Laura imediatamente se inscreveu. Teve êxito e foi selecionada para participar do referido curso. Ficou muito contente e naquela noite quase não dormiu de contentamento e ansiosa diante da oportunidade.
Participou do curso e foi muito elogiada pelo seu empenho e dedicação. O professor comentou com a tia dela, das habilidades da Laura e aconselhou-a a investir na formação da Laura nessa área.
A partir daí, começa uma nova vida para Laura. A tia começa a dar-lhe mais espaço na cozinha e mantem-se conectada em relação a futuros cursos gratuitos em culinária. Seguramente teria que ser curso em sua cidade, pois ela não dispunha de tempo e recursos para viagens...
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O tempo passou... Laura terminou o ensino fundamental. Tornou-se uma jovem calma e sonhadora. Queria se dedicar a culinária e foi buscando formação nessa área, não só através dos conhecimentos da tia, mas efetivamente através de cursos online ou presenciais que, por ventura, aparecesse na sua cidade.
Já participava mais ativamente dos afazeres na cozinha da sua tia. Com isso, elas puderam receber mais propostas e ganhar mais dinheiro. A tia começou a dar uma quantia do recebido para a sobrinha, que passou a ter uma entrada semanal de recursos. Parte desse dinheiro Laura comprava roupa, cremes, parte enviava para mãe e parte guardava para um futuro curso de culinária em uma cidade grande.
Depois de cinco anos nessa labuta diária, junto coma tia, Laura resolveu avisá-la que iria participar de um curso em uma grande cidade e que só assim ela poderia evoluir e alcançar seus objetivos. Assim foi feito, apesar da tristeza da tia, ainda que incentivando a sobrinha realizá-lo.
Após o curso ela foi muito elogiada e ganhou uma bolsa na escola de gastronomia mais famosa da França. Determinada a se aprimorar, Laura se matriculou na prestigiosa escola de gastronomia Cordon Bleu, onde ninguém acreditava que aquela simples jovem se tornaria uma excelente aluna. Ela adquiriu o dom de transformar pratos simples em sofisticados pratos, apreciados por um público muito seleto de pessoas. Suas receitas traziam muito do aprendizado com sua tia, onde iniciou essa habilidade na cozinha, que acompanharia por toda a sua vida.
Tornou-se uma profissional requisitada por muitos restaurantes nacionais e internacionais. Passou a trabalhar pelo mundo, se especializando em comidas diversas como paella, comida japonesa, principalmente sushi, comida francesa, goulash, pou-au-feu, dentre tantos.
Esse é um conto sobre superação, sobre aprendizado e resiliência de uma menina pobre, mas que persistiu, lutou e encontrou apoio para alavancar seus sonhos. Essa é a história de uma tia que ajudou a alavancar os sonhos da sobrinha, que certamente não teriam acontecido sem esse suporte dado por essa mulher simples, mas solidária, capaz de proporcionar uma vida digna a uma menina que só necessitava uma oportunidade...