Jonas Teixeira Nery

Um homem solitário - CONTO

Deste pequeno, Júlio aprendeu com seu pai sobre o mundo. Seu pai tinha um globo terrestre giratório, muito detalhado, além de um mapa-múndi fixado na parede da sala da sua casa. Com esse globo e esse mapa, além de muito conhecimento, sentavam e ficavam explorando os recantos mais inóspitos do planeta Terra: estudavam juntos os países da África, também os países da América, além dos países da Ásia, da Europa, da Oceania. Em outros momentos, estudavam os oceanos e mares. Também costumavam explorar os relevos pelo mundo. Essa era uma aventura que Júlio, muitas vezes na semana, compartilhava com seu pai. Desta forma, Júlio adquiriu uma forte base geográfica, que o levou a se destacar na escola, em todos os seus estudos referentes a essa área.
João, o pai de Júlio, gostava de viajar e gostava de Geografia. Sempre assistia os filmes sobre viagens, lugares e paisagens. Também lia muito sobre os países e suas peculiaridades: comida, vestuário, cultura, dentre tantas informações que pudesse obter. Foi ensinando tudo isso para seu filho. Júlio gostava muito do pai e o respeitava. Talvez todo o respeito estivesse associado a relação que eles mantinham como pai e filho.  Viviam sozinhos, desde o falecimento da esposa de João. Talvez essa seja a razão mais forte para o estreito relacionamento dos dois. Viviam harmoniosamente, embora, muitas vezes, João tivesse que atuar como pai, não deixando Júlio se enredar por caminhos tortuosos. 
Viviam com certo conforto, mas sem luxúria. Desde cedo, Júlio aprendeu a economizar e ajudar nas tarefas de casa. Ainda que tivessem uma diarista, eram eles que mantinham a casa limpa e organizada, assim como lavavam suas roupas e separavam o lixo orgânico do material reciclável. Assim, Júlio foi aprendendo, no dia a dia, a respeitar o meio ambiente. Nada de consumo excessivo de água e energia elétrica. Muito de comida saudável e caminhadas frequentes no parque da cidade.
Moravam numa casa pequena, bem cuidada e limpa. Tinha um pequeno jardim na frente e no quintal aos fundos, cresciam, em uma horta, muitos temperos, legumes e verduras, frutas, hortaliças e ervas medicinais, responsáveis pelo abastecimento de seus moradores. Seu pai lhe havia ensinado que alimentos saudáveis não necessitavam ser sem graça e são fundamentais para a nossa saúde. 
A casa era toda murada e os muros, que a cercavam, estavam cobertos de heras, que os envolviam completamente. Isso dava uma bela aparência, com uma sensação de liberdade e amplitude ao ambiente. Eles estavam cansados de ver muros, nos centros urbanos ou mesmo na vizinhança, com visual sujo, seja por desgaste do tempo, que retira a tinta, por umidade ou pichações. Assim, João optou por plantar heras no muro de sua casa. Escolheu um tipo de heras que não atraísse insetos indesejados, facilitando a sua vida e prevenindo situações indesejáveis.

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Júlio cresceu. Se formou. Fez faculdade de oceanografia, seguramente com o incentivo do pai, nos diversos momentos de suas vidas juntos, discutindo sobre profissão e aventuras. João faleceu. Apesar do Júlio sentir muito a falta do pai, com seu trabalho preencheu os vazios em sua vida, após o falecimento do pai. Agora não tinha mãe e nem pai. Estava sozinho, visto que seus familiares pouco o procurassem. Começou os seus estudos, seguindo o conselho que seu pai lhe transmitira durante a vida juntos. Agora estava viajando para a Europa, onde iria iniciar o mestrado na comunidade europeia. Havia logrado uma bolsa de estudo em um grande projeto multidisciplinar, envolvendo mudanças climáticas. A partir desse estudo teve oportunidades de viajar por várias regiões do mundo, muitas vezes enfrentando dificuldades em toda forma de acolhimento. Algumas vezes, em hospedagens em lares alheios, em hospedarias, em barracas improvisadas pelos caminhos, outras vezes em locais mais confortáveis como um navio de pesquisa na Antártida ou mesmo nas geleiras da América do Norte, essas eram as casas de Júlio. Tornou-se um viajante que deixou o conforto e o comodismo da sua casa para buscar vivências e conhecimentos novos, como seu pai o ensinou. Assim, pode conhecer diversos problemas ambientais pelo mundo. 
Nas diversas regiões coletou amostras e dados, realizou medições em navios oceanográficos, em diversas pesquisas de campo. Era rigoroso com o seu fazer científico, realizando muitas anotações diárias, mas ainda não se acostumou com as agruras de seus trabalhos de campo.
Ele viajou desde o domo de gelo na Groelândia até os pântanos das Everglades, na Flórida, desde o mar de Aral até o mar Morto, desde o extremo norte do Alasca até o extremo sul da Nova Zelândia, desde as planícies do Serengueti até o deserto de Kyzyl Kum, desde o Nilo até o Congo, desde a costa do Esqueleto, na Namíbia, até as ilhas Galápagos, desde Mauna Loa até o delta do Mekong, desde as Badlands em Dakota do Sul até o cabo da Boa Esperança, da floresta Amazônica até o parque nacional das geleiras, desde o Titicaca, lago mais alto do mundo, até o deserto do Atacama. Muitas vezes as paisagens se mostravam melancólicas, não só pela imensidão dos desertos ou dos gelos das regiões frias, onde teve que fazer medidas e observações, mas se sentia feliz...

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Seu pai não construiu com ele uma ponte entre sentimento e conhecimento. Deixou-o carente de envolvimentos emocionais, tais como amor. Júlio estava preparado para sua vida profissional. Conseguia encarar os desafios e desenvolver habilidades para solucionar problemas complexos, mas era um solitário, um homem incapaz de externalizar suas emoções. Associado as suas viagens constantes, para lugares muito diferentes como geleiras, desertos, oceanos, havia também essa carência emotiva que o afastava de possíveis relações afetivas. Vivia solitariamente e dedicado ao seu trabalho. 
Júlio não se sentia só. Gostava de passar mais tempo sozinho, embora se sentindo ligado a outras pessoas através da profissão. Não se deparava com sentimentos de tristeza e não buscava o isolamento, ainda que não gostasse dos eventos sociais, para os quais era sempre convidado. Vivia rodeado de parceiros em sua profissão. Sua cabeça estava ocupada constantemente com projetos, com viagens e não havia tempo para a solidão em sua vida. Às vezes se sentia nostálgico, melancólico, mas tudo vinha a partir da saudade do pai, da ausência daqueles momentos em que passeavam juntos, em que olhavam o mapa, na parede da casa deles, e viajavam juntos. Esse era o momento em que mais sentia um vazio interior. Não se sentia despossuído de afeição por ninguém, mas sentia, muitas vezes, uma saudade por sua casa e o convívio com seu pai e seu cachorro. Nunca viveu rodeado de sentimentos como raiva, medo, inveja, ódio, anseio ou piedade. Suas relações afetivas envolviam seu pai, sua casa, seus livros e as viagens que sonhava, um dia realizar, tendo seu pai de companheiro. Então o sentimento desejo é que aflorava mais nas emoções de Júlio: desejo de viajar, desejo de estudar, desejo de conhecer outros lugares... Seu pai sempre lhe mostrou uma condição de vida tranquila e serena, isenta das agitações que se recebe pelas impressões dos sentidos e do conhecimento que julgamos ter das emoções, dos sentimentos, em nossos cotidianos. 
Júlio gostava do silêncio em seu espaço, no lugar onde vivia. Não tinham medo da solidão. Contestava o padrão de vida de seus amigos, muitos deles casados e infelizes. Não era casado por opção. Também não estava desesperado, buscando um relacionamento a qualquer custo. Contestava seus amigos que sempre estavam buscando uma relação afetiva, que não conseguiam viver sem o envolvimento sistemático com outra pessoa. Amigos que mantinham relacionamentos doentios, abusivos ou indiferentes. Contestava o amor romântico, tão presente em nosso ritual de vida. A idealização do amor eterno e romântico não o envolvia, não o atraía! Para ele, a felicidade não dependia da quantidade de amigos que se tem ou de um relacionamento amoroso... Assim, Júlio construiu sua vida, construiu seus sonhos...