Está dentro do meu peito.
Eu consigo sentir algo mexer cá dentro, de mãos dadas com o meu Coração, sentado à sua direita, sussurrando à sua esquerda e vibrando por todos os lados.
Eu sinto. Não sei o que é, mas sinto-o, como um parasita…
É um sentimento de grande confusão, de grande conflito. E o mais revoltante é a sua futilidade, o facto de não existir nada fora de mim que me abale da mesma maneira que este enxame interno me abala.
Não consigo pintar o retrato desta emoção com as minhas palavras, mas posso tentar.
Este retrato teria de ser pintado com o meu sangue, todas as sombras teriam de ser feitas de lágrimas, todos os detalhes esboçados pelos dedos que correm pela minha face e me limpam os borrões dos olhos. Seria um retrato com quatro cantos, delimitados pelos meus próprios limites físicos, mas que assim como pinturas tradicionais, excederia essas limitações tangíveis e invadiria o ambiente que o acolhesse, me invadiria a mim e esbateria as cores que pintam o meu mundo.
Se este sentimento fosse uma obra de arte, seria uma enorme tela cheia de nada.
Eu tenho tudo.
Mas, se eu tenho tudo, porque é que este parasita maligno e irrequieto não pára de cantar cantigas e romances ao meu Coração? Não se cala, tagarela!
Ao entrar no museu do meu ser, na exposição aberta de todas as minhas emoções, eu olho para a tela vazia, branca e incompreensível e deixo-me levar pelos questionamentos, pelas perguntas.
“Por que é que esta obra aqui está? Qual o seu sentido e qual o motivo da aura pesada que me suga para dentro dela?”.
De repente, a zona em volta desta exposição artística ficou silenciosa, todas as pessoas foram embora, deixando-me a sós, eu e a tela perturbadoramente branca. Todas as portas se fecharam, todas as janelas opacas e seladas, todas as luzes apagadas, um único holofote apontava para aquela imensidão branca sem sentido.
Eu estava só.
Foi aí que ouvi a voz do Parasita Trovador, que cantarolava e estremecia com a sua voz e com as suas cantigas de amor as paredes do museu, me estremecia a mim e a todos os meus órgãos. Ele silenciou-se, parou ao meu lado, colocou uma das suas mãos peganhentas no meu ombro e revelou ser o autor daquela fétida pintura incompreensível pela luz dos meus olhos. Aí, eu entendi.
A pintura já era real, mas não era da minha autoria, mesmo dentro do meu museu, eu não precisei de pensar nela, não precisei de a pintar. Ela foi pintada diretamente pelas mãos sebosas deste parasita irritante, este verme que me causa este sentimento sem sentido algum.
Finalmente, fui capaz de compreender a origem do meu vazio.
Não passa daquilo que me torna humana.
Nem todos os dias se pode sorrir. Nem todos os dias posso imitar o bichinho que vive no meu peito e sair por aí a cantarolar, a espumar de alegria pelos cantos da boca.
Há dias em que tudo o que me apetece é sentir o meu lado mais humano, menos celestial, sentir a realidade a empurrar-me para uma queda livre e sentir as injustiças e as insuficiências da vida. Viver não é o mesmo que nadar num mar sem ondas, é estar perdido na sua imensidão azul de desconhecimento e medos constantes, racionais e irracionais.
Este quadro pendurado na minha exposição não foi pintado pelas minhas mãos, não foi uma escolha minha pendurá-lo aqui. Teve de ser.
Por isso, mesmo que seja impossível estar sempre satisfeita, mesmo que seja impossível esconder os defeitos da minha humanidade, mesmo que eu não consiga compreender este género de arte, a arte do vazio e da ausência da justificação, eu tenho de conviver com ela, deixá-la escorregar goela abaixo. Talvez, se eu for capaz de aceitar estas pinturas, talvez se eu as tentar interpretar e se eu deixar de ter medo de olhar para elas, talvez as outras pessoas também sejam capazes de parar, olhar para elas e tal como eu, fazer um esforço para as entender.
Por detrás da confusão e inconstância do desconhecido, está a paz.