De modo que como dizia o saudoso cego Faustino em Cabrobó, a verdade nunca ninguém vai saber, porque a quem interessa a verdade? E de fato ninguém sabe, nem saberia, se não fosse o desprendimento dos personagens da literatura. Somente eles cuja existência assoma e se eterniza em um enredo, em uma trama, exceto em textos de realismo fantástico, são os únicos seres verdadeiramente autênticos, reais, já que por não existirem em carne e osso estão livres da censura social, do policiamento moral, da culpa e da vergonha, do julgamento. Adorados ou odiados, porém sem pecado. Para eles sempre haverá salvação e imortalidade. No entanto alguém terá que levar a culpa disso tudo, alguém terá que pagar pelas transgressões desses seres imortais e irresponsáveis que vagueiam impunes por páginas e mais páginas, todo esse fardo será transferido para aquele que os cria, seja de histórias contadas, ouvidas ou lidas que alimentam a imaginação, nada sendo original, tudo sendo digerido e transformado. O autor lhes fornece livre arbítrio, mas assume suas penas. Os personagens que falam e pensam, são infinitamente mais reais que os personagens que interagem em sociedade, estes escondem a imensa maioria dos seus juízos, da sua verdadeira essência. É nos romances, nos contos, nas novelas, que fulanos e beltranos ganham voz e contam suas histórias com a segurança de permanecerem anônimos, sempre espectador, nunca autor, é do outro que se está falando, e assim leitor e autor podem viver e sentir tudo, personagem real anônimo e resguardado. Só assim é possível conhecer através dos relatos e confissões os segredos de nossos protagonistas, de outra forma eles não nos contariam, provavelmente não contariam nem ao seu confessor mais íntimo. Óbvio que não se trata de um comportamento exclusivo dos atores da trama. Para assegurar seu recato e compromisso com a decência, para que saibam que se importam, ritos sociais foram criados, encontros de casais, círculos religiosos, ordens, fraternidades, vetustos cidadãos, casais indissociáveis, senhoras resvalando a meia idade expondo peitos exuberantes de natureza semelhante ao seu comportamento social, todos ciosos do seu papel social, descendentes decadentes do Faubourg de Saint Germain, reúnem-se regularmente em uma salada de fragmentos de inveja, ressentimento, perfídia, ambição, desonestidade, competição, dissimulados por sorrisos cordiais que sonegam as verdadeiras impressões, ácidas e críticas, contra as quais ninguém (nem os próprios observadores) estará imune. Óbvio que seria leviano atribuir simulação a tudo que se passa nessas reuniões, pelo contrário, mas a virtude é sempre pública e a maledicência é furtiva, assídua frequentadora do chá das cinco. Á noite todos os gatos são pardos porém á luz do dia as cores são mais evidentes. Por sorte a mente e seus pensamentos são impenetráveis senão todos os círculos do Inferno de Dante seriam insuficientes para abarcar a humanidade.