joaquim cesario de mello

O QUE OS RELÓGIOS NÃO VEEM

 

Os vidros das janelas estão manchados de ontem

a empoeirar os móveis e os objetos da sala

como uma fina névoa acumulada de tempo

 

Tudo ao redor parece roído pelo consumo dos minutos

no extinguir vaporoso da tarde

que ruma conformada ao final do dia

que amanhã borrará ainda mais

as vidraças já tão sujas e maculadas de idades

 

Se o Sol soubesse das horas

amanheceria atrasado e demorado

apenas para se pôr depois da noite

e um pouco antes da próxima madrugada

 

(Os relógios dizem as horas

mas não sabem nada sobre o tempo

e os minutos que os relógios marcam

não são iguais aos minutos que vivo e lembro)

 

Sobrevivo no persistir das minhas lembranças

pois é no interior da memória que habita o tempo

sem números, datas, horários ou agendas

 

(Sou um breve espaço

entre meu passado e os sonhos)

 

O tempo que não usa relógios

é como um ácido invisível

que derrete metais e plásticos

dissolve cálcios, carnes e tecidos

deixando somente para trás

o rastro amarelecido nos vidros

 

E assim tudo aos poucos vem e se vai

o Sol, as manhãs e as tardes

e o que sempre fica nos seus lugares

é essa noite escura de estrelas caducas

a escutar o choro infantil das maternidades

 

           (O Universo e os relógios

           são analfabetos de tempo)