Sou do tempo
das aulas de caligrafia
das letras cursivas
arredondadas e bonitas
escritas à lápis ou com caneta
no branco nevado dos papéis
Sou do tempo
dos números juntados nas tabuadas
das réguas de cálculo
de contar com os dedos
dos desenhos e colagens
e dos jogos de quebra-cabeça
Sou do tempo
dos relógios de ponteiro
dos pinguins em cima das geladeiras
das vitrolas e dos rádios bivolts
das calças curtas dos meninos
e das saias rodadas das meninas
Sou do tempo
do iê-iê-iê rebolado
das pílulas anticoncepcionais rosadas
dos telefones de gancho
das chaleiras em ferro batido
e do Bombril nas antenas de televisão
Sou do tempo
do tijolinho mágico
do pião com fieira
do ioiô de madeira
dos carrinhos de rolimã
e do pega-pega das brincadeiras
Sou do tempo
do bip-bip do Sputnik
das curvas da estrada de Santos
dos Beatles e dos Monkees
das músicas açucaradas da Jovem Guarda
e das calças colantes boca-de-sino
Sou do tempo
em que havia tempo
para se ler um livro em uma tarde inteira
para se pensar antes de falar besteira
para andar com calma olhando a paisagem
e escrever sem pressa um bom poema
Sou do tempo
em que o tempo era mais leve
mais incolor, inodoro e invisível
que as moléculas de oxigênio
Sou do tempo
que o tempo levou
e apenas ainda não me devorou