joaquim cesario de mello

SOBRE O TEMPO EM QUE HAVIA TEMPO

 

Sou do tempo

das aulas de caligrafia

das letras cursivas

arredondadas e bonitas

escritas à lápis ou com caneta

no branco nevado dos papéis

 

Sou do tempo

dos números juntados nas tabuadas

das réguas de cálculo

de contar com os dedos

dos desenhos e colagens

e dos jogos de quebra-cabeça

 

Sou do tempo

dos relógios de ponteiro

dos pinguins em cima das geladeiras

das vitrolas e dos rádios bivolts

das calças curtas dos meninos

e das saias rodadas das meninas

 

Sou do tempo

do iê-iê-iê rebolado

das pílulas anticoncepcionais rosadas

dos telefones de gancho

das chaleiras em ferro batido

e do Bombril nas antenas de televisão

 

Sou do tempo

do tijolinho mágico

do pião com fieira

do ioiô de madeira

dos carrinhos de rolimã

e do pega-pega das brincadeiras

 

Sou do tempo

do bip-bip do Sputnik

das curvas da estrada de Santos

dos Beatles e dos Monkees

das músicas açucaradas da Jovem Guarda

e das calças colantes boca-de-sino

 

Sou do tempo

em que havia tempo

para se ler um livro em uma tarde inteira

para se pensar antes de falar besteira

para andar com calma olhando a paisagem

e escrever sem pressa um bom poema

 

Sou do tempo

em que o tempo era mais leve

mais incolor, inodoro e invisível

que as moléculas de oxigênio

 

Sou do tempo

que o tempo levou

e apenas ainda não me devorou