Marçal de Oliveira Huoya

A Maldição do Neandertal

“Sei que para o Poeta guardais um lugar nas fileiras felizes das santas legiões, e a uma eterna festa o vais convidar, a dos Tronos, Virtudes e Dominações” (Charles Baudelaire)

 

Os escritores contemporâneos e os do futuro carregam o ônus pelo bônus, presenteados que foram pelos escritores que os antecederam, por isso não existe saída, ao artista é mandatório, é preciso ser original. E quão difícil isso é, acredite.

Há uns setenta mil anos atrás um Neandertal rude, um troglodita sensível e inspirado exatamente naquela manhã de primavera (ele ainda não sabia que havia uma estação, apenas já desconfiava, e que ela seria batizada assim, primavera), ao abrir a janela pétrea e maciça da sua confortável caverna rolando a rocha, subitamente se deparou com o rebento de uma rosa vermelha e sobre ela drapejando uma borboleta colorida, o raio de sol como pano de fundo a iluminar esse cenário bucólico. Não se sabe porque, aquela imagem naquele dia lhe pareceu diferente causando-lhe um lampejo, dardejou-lhe uma epifania, fazendo com que voltasse rapidamente para o interior da gruta em busca de suas ferramentas para moldar, pintar, gravar, quem sabe qual ideia lhe veio primeiro, nas paredes da fria rocha, fria não, glacial, lembrou nosso homem das cavernas imaginando corrigir mentalmente um narrador do futuro, com um sorriso também glacial para combinar com seu aconchegante refúgio, e inscreveu com traços rupestres (assim chamaram os arqueólogos setenta mil anos depois), marcas até hoje só decifradas por nossa imaginação: \"hoje acordei e ao abrir a janela me deparei com uma linda rosa vermelha sendo visitada por uma borboleta colorida e iluminada por um raio de sol\", recuou e admirou o que tinha “escrito” manchando as paredes com suas mãos pintadas diante de algumas testemunhas perplexas com aquele comportamento estranho, boquiabertas, que juraram ter visto (embora não existam registros confiáveis do fato) uma lágrima rolando do rosto daquele macho alfa reprodutor que sem saber se encaminhava para a extinção, deixando no entanto uma memória de sua sensibilidade. Assim nascia a poesia.

A partir de então as primitivas professorinhas neandertais passaram  a ler e ensinar o texto para os neandertaizinhos como ditado, dever de casa, assunto de prova etc., etc. e, detalhe importante, as subsequentes gerações de neandertais, cro-magnons, homo sapiens, homem moderno, em se deparando com uma mesma tela deslumbrante dessas que teria sensibilizado o nosso herói dos primórdios da evolução, se inspirados por ela, passaram a ter a obrigação, o encargo, a incumbência de descrever a mesma cena ancestral só que agora de uma maneira nova, criativa, diferente, original, evitando enfadar seus leitores repetindo tudo do mesmo modo que o primeiro poeta, e quando não conseguindo, inauguraram o pieguismo, o estilo mais corriqueiro e repetitivo utilizado pelos artistas que não sofreram a mesma epifania de nosso sensível ancestral, ou pensaram que sim.

Daqui a outros 70.000 anos, nossa época primitiva (para os homens futuros) será lembrada como o tempo em que o ser foi substituído pelo parecer, o tempo das aparências e da trivialidade da arte. Não tem tanto tempo que quando um filme ou um livro não despertava o dom da unanimidade da maioria, pleonasmo proposital já que a unanimidade na arte é impossível, suscitava o comentário, não vi ou não li e não gostei, um juízo mal humorado que adaptado aos novos tempos se modificaria facilmente hoje em dia para não vi e não li, mas adorei. Não tem muito tempo também uma artista conhecida, representante da fina flor da arte baiana, interrogada sobre a obra do extraordinário João Ubaldo comentou surpresa com a pergunta do repórter que nunca tinha lido nada dele, mas uma irmã tinha lido e gostado.

O fato é que com o advento das redes sociais (ao menos no Brasil), no que se refere a arte literária, aflorou visivelmente uma disparidade na proporção inversa entre autodenominados leitores e escritores na estimativa do dobro ou o triplo. Explico. Metade da população brasileira não lê, um terço dela nunca comprou um livro, e dos que leem uma parcela significativa não consegue concluir a leitura, comprar um livro, uma extravagância, ou seja, ler é uma exceção, não uma regra, mas escrever se tornou uma facilidade ao alcance de todos. Todos esses escritores carregam consigo a responsabilidade, a maldição do primeiro artista neandertal.