LUZES DA CIDADE
Eu costumava frequentar aquele restaurante na Praça da Sé. Já não me lembro do nome, pois eu era muito jovem, então. O restaurante, ao mesmo tempo, era um local onde dançavam aqueles casais dados à boêmia e quando na profunda noite se misturavam com outros, tendo parceiras de bordéis de ruas adjacentes. O dinheiro me era curto, portanto, com uma garrafa de cerveja enfeitando a minha mesa eu permanecia, até perto da madrugada. O garçom, já acostumado comigo, de vez em quando me estimulava: \"uma dose seca de vodca?\" Eu lhe agradecia a aferta. Ele serviçal retrucava: \"fique à vontade.\" Às vezes, num breve bate-papo entre nós, teminávamos em lúdicas gargalhadas. A pergunta dele tinha um matiz de empática ironia. E, ali, observando a perícia de um ou outro casal na dinâmica das danças de samba, tango, bolero, mambo-jambo, chá-chá-chá e rumba; eu me encantava. Sem magoar minha autoestima eu lhes rendia admiração, justamente, por não saber dançar. Uma vez numa viagem de navio Cruzeiro aventurei-me a pagar dólares por aulas de dança. A parceira, instrutora anericana, exclama: \"Ah, você brasileiro e não dança samba?\" Disfarcei: \"mama mia, sono tutto italiano.\" Caprichei na fonética do idioma. Mas inapto para dançar, senti-me tímido por ser destituido de qualquer dote natural de ritmo. E terminei o curso na segunda aula. Assim, uma única garrafa de Brahma seria o meu apoio na desculpa de manter-me no local pela noite adentro. Naquela época só existiam duas marcas de cerveja: a Brahma e a Antarctica, que, por sua vez, oferecia ainda a opção da cerveja Pilsen. Sem companhia alguma, solitário ali me postava e ausente de qualquer acanhamento. Bicava um gole num tempo e outra bicada mais tarde e com isso parte da noite se esvaía. Depois pagava a despesa e seguia a dormir relaxado e satisfeito com encantos e fantasias da alma boêmia; às vezes me deliciando no íntimo com algum amor platônico.
Mas um dia me atrevi a sair sem pagar. No entanto, um garçom recém-chegado, quis mostrar serviço, e a calhar no dia do calote. \"Lá vai ele sem pagar.\" O gerente me segura, empurra-me com veemência ao balcão. \"Como é, rapaz? Paga, ou não paga?\" É aqui que uma amizade tem retorno– o meu garçom amigo intervém: \"deixa que eu pago a conta.\" Eu, surpreso, lhe agradeço... Ao descer a escadaria do salão ouço ele se justificar: \"Esse garoto é interessante, nasceu para a noite. É uma mariposa inofensível. Amanhã ele volta.\"
Profetizou certo. Até hoje as luzes noturnas de uma metrópole me pertencem. E vice-versa.
Tangará da Serra, 04/07/24