Foram tantos os espelhos
que ao longo da vida
do outro lado olharam para mim
O primeiro tinha um bebê
que se parecia muito comigo
e que me olhava sorrindo
com surpresa e alegria
Depois teve aquele espelho
que me ensinou a escovar os dentes
de cima para baixo
começando pelos dos lados
e terminando com os da frente
Alguns poucos anos seguintes
o mesmo espelho me viu banguela
como se tivesse aberto na boca uma janela
pelo leite dos dentes que não derramei
O terceiro espelho se assustou
com minha cara cheia de espinhas
só não enxergou minha agonia embaixo
porque envergonhado dele apagava a luz
Tenho saudades do quarto espelho
pois foi nele que apaixonado ensaiei
incontáveis juras eternas de amor
e nenhuma delas sequer foi cumprida
O mais triste dos espelhos
foi aquele que estava em janeiro
no dia em que penteei os cabelos
antes de ir ao enterro de minha mãe
Teve espelhos que me viram
inseguro e hesitante
inquieto, aperreado e confuso
enquanto outros me olharam
animado, jovial e vibrante
teve até um que me flagrou
esnobe, convencido e arrogante
Agora que o espelho do hoje
me contempla calvo e grisalho
com vincos cavados pelo tempo
será que por estar novamente desdentado
ainda vou poder retornar ao meu menino
e encontrar meu primeiro espelho?
Quantas faces deixei encravadas
nos meus tantos espelhos?