Carlos Lana

Do outro lado da rua - Conto

 

 

 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Os velhos andavam pelas ruas em seus passos lentos e habituais, arrastados. Sem pressa, era uma boa forma de dar uma explicação resumida daquele caminhar. Antes de tudo, sem pressa. Como quem por mil vezes antes o tenha feito que esse correr já não faça mais tanto sentido, como quem tenha descoberto da pior forma. Só eles sabem se o seu presente é o que procuravam.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Ela duvidava que o fosse.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Mas isso não importava, talvez para eles, e não por muito tempo, também. Um dia um jovem os olha e pensa na fragilidade, mas é uma sensação distanciada, uma intriga esporádica. Um dilema postergado até o limite, e, assim o seria, de toda forma, afinal a velhice sempre pode ser maior ou menor em comparação. Ela não queria ser velha como eles, era a única certeza que carregava consigo naquela tarde amena de segunda-feira. Cada dia parecia tão difícil que viver sessenta anos parecia inferno maior àquele ao qual se condenaria.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Perdida? — uma voz cortou o estardalhaço cotidiano, insistentemente ignorado por seu cérebro, mas sempre lá — Não sei se alguém vai vir por lá. — a dona da voz apontou para onde encarava e por um instante ela pensou quanto tempo passou ali, parada diante da faixa de pedestres entre o semáforo e uma banca de jornais olhando sem ver a multidão passar.  ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Não há nada lá.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Hã...? Não, é que — balbuciou cada vez mais enrolada tentando colocar as palavras em ordem e decidir entre uma pergunta e um pedido de desculpas, sem resposta.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Virou-se seguindo a mão que ainda apontava procurando pelo corpo e logo o rosto que a mirava, os olhos de encontro aos seus; a boca dona da voz que a interpelara.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Não havia nada ali.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Girou atordoada procurando aonde ela poderia ter ido. Ela estava bem ali. Estava. 
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎No vento suas palavras ainda ecoavam: 
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Não há nada lá.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Seus olhos confusos voltaram a encarar o outro lado da rua e por um instante ela não mais pode acreditar na veracidade da sua capacidade de o fazê-lo. Nada havia, nada lá.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Caiu para trás, o peito ofegante enquanto se afastava lentamente se arrastando para cada vez mais longe da rua, o beiral da calçada como um limite claro entre ela e o espaço limiar que se estendia adiante. De fato, a velhice sempre pode ser maior ou menor em comparação. A vida que corre nas veias dos homens, durante o tempo que o fizer garante isso. A morte sempre foi o ponto final.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎O nada sempre foi o seu ponto final, ela pensou conhecer ele de perto, como um velho amigo que a abraça quando não há mais ninguém por perto. Ela não conhecia o vazio.
Não queria conhecer.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎O semáforo piscou no canto do seu campo de visão chamando sua atenção. Vermelho, pare. Traduzia os seus sentimentos. Seu corpo todo estava paralisado e ela não conseguia se mexer, nem se quisesse. Ela queria.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Vermelho
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Vermelho
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Vermelho
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Vermelho
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Vermelho
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Ver...

 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎... de repente o mundo a sua volta se acendeu e ela se levantou em disparada, correndo com tudo que tinha sem olhar mais para trás. Quando abriu os olhos sentiu as lágrimas que invadiam involuntariamente a sua face e percebeu que ainda estava de pé sobre a calçada. Suas mãos tremiam e ela já não sabia mais o que era real ou não, tocou os seus dedos e apertou, até que doessem. O sinal ficou verde, quanto tempo estava ali?
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Os velhos andavam pela rua, os jovens corriam uns atrás dos outros com pedaços de lixo enquanto meninas se ajuntavam em grupinhos dando gritinhos exagerados e sendo fitadas em reprovação por adultos que passavam por ali, desgostosos de si mesmos vistos neles. Um homem andava em sua direção. O que ela estava procurando?
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Perdida?
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Ignorou, assustada pendulou entre um andar para trás e para frente, ao mesmo tempo. Mantendo-se de pé somente por uma mão que tocara suas costas.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— A gente nunca sabe quando ela vai chegar.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎O semáforo, agora aberto, permitia que a multidão do outro lado da rua viesse em sua direção. Todos a olhavam nos olhos e a mão que pareceu a segurar e manter de pé agora parecia pesada.
Não respondeu a voz que divagava.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— A gente sempre quer escolher, mas é tudo uma ilusão.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Sua mente tentava focar em todos aqueles olhares que a miravam, notou, porém, eles a atravessavam. Pareciam sempre se focar em algo atrás dela, eram temerosos.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Não se pode ignorar ele, sabe? Não se pode fugir. — silêncio, um convite.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Por isso não é uma escolha.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Você entendeu. — disse por fim.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎— Não há nada ali.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Ela não se virou mais pode sentir no ar que a voz assentira aquela resposta, a mão desapareceu e ela sentiu o mundo se desfazer a sua volta, o chão sendo puxado sob os seus pés feito um grande tapete enquanto a multidão que vinha, indiferente, a dragava. O limiar da calçada que antes fora uma muralha se tornava um abismo e quando a multidão enfim se espalhou não havia nada ali.
 ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎Nada para lembrar.