Vim de muito longe, de um lugar chamado infância. Não sei de onde surgiu, mas, de onde cheguei, tudo era impregnado de encantamento, magia e descobertas. É bem verdade que tive alguns joelhos e cotovelos ralados, aqui e acolá um galo na cabeça, de vez em quando vivia gripado, tive sarampo, coqueluche e catapora. Teve um dia que cai da escada, e de tempos em tempos levava topada. Talvez isso fosse apenas para me dizer que a realidade era feita de paredes invisíveis que podiam gerar diversos machucados.
Lá os adultos eram gigantes, que quando, entre eles, conversavam, falavam coisas incompreensíveis, difíceis e complicadas. Nunca entendi por que os adultos não brincavam, somente liam jornais, assistiam novelas, bebiam whisky e cerveja, beliscavam petiscos salgados, e esporadicamente contavam piadas. Decididamente jamais queria ser como eles, sisudos, cautelosos e circunspectos, que trabalhavam, pagavam as contas, engordavam, falavam de política, queixavam-se da carestia e reclamavam da vida. Para mim, daquele lugar de onde vim, as coisas não tinham etiquetas e preços, pois tudo parecia ser livre e de graça.
Desde que nasci, o mundo da infância existia. Eu já era criança. Sempre fui ali criança. Não teve sequer um dia que não fosse criança. Minha memória era toda menineira, e do passado mais passado do meu passado apenas lembro de um velocípede azul que ficava guardado na garagem da casa em que morava. Por isso eram esquisitos, os adultos, e como eles aqui entraram. Quem criou os adultos? De que barro eles foram feitos? Se um dia eu crescer, não vou ser adulto.
No mundo da minha infância dor de barriga durava um dia, e, quando se ficava triste, a tristeza logo passava. Acho que o que nos curava era a fome danada de brincar. Tal vontade insaciável, essa, sim, nunca terminava. Crianças são seres desnutridos de folias, por isso necessitamos, o tempo inteiro, correr, recrear, fazer bolhas sabão, soltar pipas, pular corda, caçar tesouros, jogar bolinhas do gude, andar de bicicleta, fingir-se de estátua ou de morto, desenhar, dançar, saltar amarelinha, abrir presentes, brincar de esconde-esconde ou pega-pega... Quando você olhar uma criança atrás de uma bola, lembre-se de que ela não está somente brincando com a bola, ela está brincando com o mundo. Eu mesmo, nas tantas ocasiões em que fui super-herói, salvei inúmeras vezes a Humanidade.
Porém, tudo que é encantado tem também seu outro lado: feiticeiras, fantasmas, bichos-papões, comadre florzinha, mula sem cabeça, monstros embaixo da cama ou que moram nos armários, ciclopes, bruxas, ogros, cucas, sombrações e assombrações. Um quarto escuro à noite, sozinho, era o que mais nos assustava. Mas, meu anjo da guarda me guardava, me protegia e me zelava.
A infância tem o cheiro dos bolinhos de goma que Miné preparava, e sabor de framboesa, morango e amora.
Estava certo Manoel de Barros, os quintais das nossas infâncias são maiores que a cidade. O da casa da minha avó, então, era uma floresta encantada, onde eu me aventurava, crescia e me deslumbrava.
Vim de muito longe, de um lugar chamado infância. E tudo lá parecia tão permanente, duradouro e infindável.