Ivan

O ESTIGMA

 

 

 

 

 

 

o

 

                E s t i g m a

 

                        Novela  Literária

 

 

 

 

                          Ivan  de  Oliveira  Melo

 

 

 

 

 

                                                PRÓLOGO

 

 

 

Havia gente demais no hospital naquele dia. Pessoas entravam e saíam num constante vaivém. Eram pacientes transportados de uma à outra ala; médicos e enfermeiras que corriam...   Tem-

po era “ouro” e os doentes dependiam desse “entusiasmo”   profissional,  por   sinal   efetuado

com bastante competência. Era enorme, também, o número dos visitantes que, a todo  instan-

te, buscavam informações sobre amigos e familiares ali internados.

Emerson Bantz roía as unhas em seu desespero, digamos, em sua apreensão.  Afinal  Luíza fora

encaminhada à sala de partos e ele, por não gostar de assistir procedimentos  médicos,  aguar-

dava ansioso por notícias. Diógenes Bantz, seu irmão, tentou acalmá-lo.

- Não adianta este nervosismo, Emerson. A qualquer instante saberemos de alguma coisa. Pro-

cure controlar-se, homem de Deus.

Emerson olhava para o irmão buscando sorrir, todavia a preocupação o dominava.

- Eu sei – disse – entretanto não é fácil, grande aflição me domina. Já  nem  tenho  mais  unhas

para roer... deixe-me roer as suas...

- Pirou? – Indagou Diógenes.

- Não!

Foi neste átimo que o ginecologista se aproximou. Carregava um ar grave,  talvez  não  fossem

boas notícias...

- Sua esposa está  bem, Senhor Emerson. Quanto ao bebê, uma bela de  uma  surpresa...  Infor-

mou doutor Ângelo Caldas.

- O que há? – Perguntou   Emerson atônito – Nasceu morto?

- De forma alguma – Respondeu  o médico – quanto ao seu estado de saúde , está tudo bem...

- O que há, então? – Emerson interpelou curioso.

- Nem é menino, nem é menina... um caso raro na medicina.

- Não estou entendendo, doutor Ângelo. Seja mais claro, por favor. – Pediu Emerson.

- Sua criança nasceu hermafrodita, isto é, possui os dois sexos... Lamento!

Emerson Bantz agarrou-se ao pescoço do irmão Diógenes e permitiu que, abundantemente, as

lágrimas lavassem sua face. Longo tempo assim se houve. Posteriormente foi outra vez  ao  en-

contro do ginecologista.

- Está mais calmo? – Questionou doutor Ângelo.

- Sim... – Respondeu Emerson – O que vamos fazer em relação a este fato, doutor?

Doutor Ângelo Caldas franziu o rosto, mostrou-se um pouco preocupado e respondeu.

- Aí está um dilema que cabe ao senhor e à sua esposa decidirem. Não posso e não devo  mani-

festar opinião, é muito cedo para isso. Com o passar do tempo, certamente o senhor terá  uma

resolução. É observar com atenção qual dos dois órgãos genitais tem mais  função  no  organis-

mo no neném. Como afirmei, o tempo é a melhor solução e um dia  a  criança   deverá   possuir   um  sexo exato. Por enquanto tal coisa é impossível.

- Compreendo – consentiu Emerson – Com certeza eu e Luíza teremos o máximo de atenção   a

isso e breve estará resolvido.

Despediu-se do médico e foi ver a esposa e conhecer seu filho... ou filha? Terrível dúvida toma-

va conta dos seus pensamentos. Não sabia o que fazer. Parentes e  amigos  desejavam  saber o

nome do bebê. Não houve como esconder o caso e todos deram ao casal o máximo apoio. Ve-

xatória situação um dia teria um fim e Emerson e Luíza esperavam ansiosos por esse  momen-

  1.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                           I

 

 

Os anos se passaram. A criança crescia saudável, no entanto ainda não se havia  um  partido sobre em qual dos sexos deveriam batizá-la. Estranhamente os dois lados da sexualidade se

desenvolviam e funcionavam a contento. Esquisito, muito esquisito...

Através de um documento judicial, o Indivíduo ainda sem nome e sem sexo definido entrava

na escola. Nem a Justiça se manifestou pela escolha de um. O caso assumia proporções alar-

mantes. Emerson e Luíza amavam o rebento em demasia, contudo se resguardavam quanto

a um futuro nome. O tempo ainda correria e chegaria a época para uma escolha.

Doze anos completava o Indivíduo. Seus pais permaneciam aflitos  em  relação  ao   assunto.

Bastante delicada a natureza deste estigma.

Certo dia, Emerson e Luíza debatiam em casa sobre o problema.

-  Emerson, meu amor, Deus nos deu uma única herdade, porém não nos mostrou uma luz a

fim de que pudéssemos resolver o impasse. Estou cansada disso tudo...

- Eu também, Luíza. Tenho receio de que façamos uma escolha errada. É a vida de nosso her-

deiro que está em jogo. Não é fácil. Para complicar, ambos os lados se desenvolvem natural-

mente. Realmente, não sei em que opinar. – Desabafou Emerson.

- Será que com 12 anos a própria criança não possa decidir o que quer ser? Homem  ou  mu-

lher? – Interpelou Luíza.

Emerson coçou a cabeça. Era evidente que este seria o caminho...

- Eu mesmo, Luíza, já o indaguei sobre o lado de sua preferência, o que escolher e  isso  você

sabe que fiz muitas vezes, porém...

- A resposta que temos é absurda: “Quero continuar com os dois lados, eles me fazem bem”.

é o que sempre responde. – Falou Luíza.

- Absurda e intempestiva esta ocorrência. Somos seus pais e podemos resolver a questão. Es-

tá se tornando insustentável – Confessou Emerson.

Abraçou-se à esposa e ambos choraram.

Que estigma! Não se havia a conhecer caso semelhante no mundo. Apesar de ser  algo   raro,

logo nos primeiros anos de vida faz-se uma escolha. Normalmente a criança  mostra suas  in-

clinações, seus pendores. Não obstante, este era o dilema de Ernesto e Luíza. O Indivíduo ha-

via em si os lados funcionando em harmonia e se desenvolvendo com  naturalidade.  Quanto

às amostras de sua personalidade, para ainda mais complicar, eram bipartidas. Tanto gostava

de brincar de boneca com as meninas, como adorava correr atrás de uma bola junto a outros

garotos. Na escola em que frequentava ninguém fazia acepção sobre seu comportamento, to-

dos eram sabedores do seu caso e não era vítima de chacotas. Pelo contrário, era uma criança

muito amada pelos amigos e amigas, pelos professores. Em fim, por todos.

Os anos correram. Acabava de completar 16 o Indivíduo e nada de resolver-se quanto à  esco-

lha de um sexo. Nem nome possuía, ainda. Era chamado de Daniel e de  Daniela,  simultânea-

mente. Eram os nomes que adorava.

Determinada tarde chegou à casa de Emerson uma carta da Justiça.  Era uma  intimação  para

uma audiência com o juiz. A jurisprudência exigia uma posição para o caso.

Emerson e Luíza Bantz levaram o Indivíduo ao médico. Exames de todos os tipos foram realiza-

dos. Surpreendentes foram os resultados. Pela lado masculino  comprovou-se  um  desenvolvi-

mento normal do órgão masculino. O mesmo excitava-se  e era profunda a produção do esper-

  1. Pelo lado feminino era uma autêntica mulher: embora não houvesse seios ( neste aspecto

parecia um garoto normal ), em si havia trompas e ovário e, naturalmente, menstruava.

Resultados completos de todos os exames feitos estavam na mesa do  juiz  que  os  examinava

estupefato.  Lia e relia, novamente lia e relia, não acreditava que pudesse acontecer semelhan-

te coisa com um ser humano em sua ótica. Era algo novo e ele não sabia como haver-se peran-

te tais fatos.

- Confesso que não sei o que opinar ou mesmo decidir –  afirmou  o  juiz –  sinto-me  profunda-

mente embaraçado diante desta questão.

- Este também é nosso dilema, Meritíssimo – retrucou Emerson – aqui estamos para dar  uma

solução ao caso,  mas tudo parece inconsequente. Não vejo veredas por onde consigamos che-

gar a uma conclusão.

- O que tem a dizer, senhora Luíza? – Perguntou o juiz.

Com a face banhada em lágrimas, Luíza Bantz encontrava-se no mesmo barco do marido.

- Não sei, Meritíssimo, não sei... Disse Luíza – Que o senhor decida o que achar  mais  conveni-

ente.

Neste instante, o Indivíduo, motivo da problemática, manifestou-se.

- Perdão, Meritíssimo – Falou – porém acho que a conveniência só diz  respeito  a  minha  pes-

soa, é sobre minha personalidade que estão  a  discutir,  sobre  minha  vida  e  acredito  que  já

tenho idade o suficiente para saber o que quero.

- E o que você quer? – Indagou o juiz.

- Prosseguir como estou, sou feliz assim... Dou-me muito bem com ambos os lados, não  há  ra-

zão para eliminar-se um deles...

- Entretanto não está de acordo com a Lei – Sentenciou o juiz – é necessário que tome um  par-

tido; Não existe no mundo ninguém desta forma.

- Há. Eu! Que o senhor autorize duas certidões de nascimento: uma  com  o  nome  de  Daniel e outra com o nome de Daniela.  

Estabeleceu-se intensa celeuma. O juiz, para ver-se livre do caso, lavou as mãos e fez o que pe-

diu o interessado.

- Espero que um dia você se decida, não pode viver assim, além de ser  estranho,  fere  os  dog-

mas da Lei jurídica e universal. – Desejou o juiz.

- Se Deus me fez assim,  é porque Ele quer que assim seja. Amém! – Retrucou o Indivíduo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                           II

 

 

 

Três meses adiante. O Indivíduo, rebento dos Bantz, encontrava-se com o coração dividido. Seu lado masculino estava apaixonado por Simone, uma colega de escola e com ela namo-

rava.  Não obstante, seu lado feminino ardia por Venâncio, um  vizinho  do  bairro  em  que

morava. Fracionava-se e sabia superar e controlar as emoções, tanto  quando  estava  com

Simone, tanto quando estava com Venâncio. Não sabia exatamente  a  quem  mais  queria.

Em seu íntimo desejava os dois e, assim, foi levando à frente os dois relacionamentos.

Como Daniel sempre estava com Simone aos sábados. Como Daniela, recebia Venâncio em

sua casa aos domingos. Seus pais achavam ridícula as situações que envolviam o  Indivíduo

e de alguma maneira tentavam intrometer-se, porém o Indivíduo não aceitava intromissões

em sua vida em relação a isso. Pedia aos genitores que  houvessem  em  si  paciência,  Deus

haveria de mostrar-lhe o verdadeiro caminho.

As coisas se complicaram demasiadamente. Como Daniel esteve em relação íntima com Si-

mone e ficou deveras satisfeito. Simone era louca de paixão pelo Daniel e segredou-lhe.

- Decida-se apenas por mim. Como homem você é excelente, desempenha com bravura seu

papel. É eficiente...  – Sugeriu Simone.

- Ainda é cedo, Simone. Quando você aceitou nosso namoro, eu deixei tudo  às  claras. Não

venha agora exigir de mim algo que não contenho, que é uma tomada de decisão.

- Está bem, perdoe-me... É que eu o amo  tanto, Daniel...

- Eu também a amo, Simone... Porém também amo a Venâncio. A realização sexual me  sa-

tisfaz por ambos os lados de minha sexualidade. Tenha paciência e seja o que Deus quiser.

Noutro dia estava com Venâncio e ambos se deram um ao outro, sem  reservas.  Venâncio

estava maluco de amores por Daniela.

- Você é minha princesa, Dany. Eu a amo! Quero-a apenas para mim...

- Não me venha nada exigir, Venâncio. Sabe perfeitamente que tenho  o outro  lado  e  que

me relaciono com Simone. Tanto de um  quanto  de  outro  sinto-me  em  realização.  Você

conhece bem o lado que experimenta.

- Sim, Daniela, eu sei... Porém é tão difícil saber que a pessoa que amo também tem o lado

oposto... Confessou Venâncio.

- Realmente... Mas veja: você se relaciona comigo pelo lado certo, o mesmo ocorre quando

tenho Simone em meus braços...

Um ano se passou. Tanto como Daniel como por Daniela, o Indivíduo era de sublime beleza

e elegância. Satisfazia categoricamente seus “consortes” e os produtos  dos  relacionamen-  

tos não poderiam ser outros.

Foi um choque quando seu lado Daniela desvendou um  grande  segredo,  uma grande  con-

sequência . Estava grávida!

Tentou esconder de todos o que descobrira, mas a barriga crescia que crescia a olhos vistos

e Emerson e Luíza sorriram de satisfação, pois, parecia que o dilema estava resolvido.

- Acho que agora posso chamá-la definitivamente de filha. Graças!

- Ainda não, meu pai. Não é porque meu lado Daniela está grávida que  desistirei  do  outro.

Amo profundamente Simone pelo meu lado Daniel. Deixe o tempo passar, breve saberemos

que posição tomarei.

- Você vai ser mãe, tem de esquecer que possui um lado Daniel. Isso agora pertence ao  pas-

sado.

-Aí é que você se engana, meu pai. Não quero e nem posso olvidar meu lado Daniel. Sabe

por quê? Porque igualmente Simone está grávida e terá um filho meu... Confessou.

- Nossa, que loucura! – Deixou escapar Luíza que adentrava na sala naquele instante.

- Que fizemos, meu Deus, para merecermos isso? – Interpelou Emerson com as mãos vol-

tadas para o Alto.

- Não devia pensar assim, meu pai. Devia sentir-se orgulhoso, posto que darei netos  a vo-

cês pelos meus dois lados.

E o tempo foi se escoando. Breve se passaram os nove meses. Como  Daniela,  trouxe  ao

mundo um lindo garoto que recebeu o batismo de Luiz Antônio. Foi em parto normal. Co-

mo Daniel, tornou-se pai de uma linda menina que recebeu o batismo de Leila.   Também

Simone houvera parto normal.

O Indivíduo dava assistência aos dois rebentos com muita euforia. Superados os trâmites

da indignação, Emerson e Luíza se viam avós “corujas” e, no mais fundo dos seus íntimos,

havia intensa felicidade.

O Indivíduo portador do hermafroditismo assim dividia seu tempo: pela manhã ficava em

casa a cuidar como mãe de Luiz Antônio. Estranhamente seu peito cresceu e a criança ma-

mava naturalmente, posto que havia muito leite. À tarde  saía e  era  seu  lado  Daniel  que

aparecia. Conseguiu um bom emprego e, assim,  mantinha a filha Leila. À noite frequenta-

va uma faculdade onde estudava Direito. Seus “consortes” também estudavam:  Simome

cursava engenharia e Venâncio enveredou pela lado da  Medicina.  Meteu na  cabeça  que

estudaria a ciência humana e prometeu a si mesmo que um dia desvendaria a secreta per-

sonalidade da mãe de seu filho. Foi um desafio a que se impôs e haveria de entender esse

tão estranho metabolismo do organismo do Indivíduo.

O Indivíduo não parecia absolutamente preocupado com tal detalhe. Seguia levando adian-

te sua dupla vida que lhe trouxe mais dois herdeiros: como Daniela tornou-se mãe de  Rita,

uma linda menina. Como Daniel fez vir ao mundo Alfredo José. Interessante é que todos os

filhos nasceram normais, sem quaisquer anormalidades.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                          III

 

 

 

 

 O Indivíduo acabara de completar 21 anos. Estava cheio de saúde,  bem como seus “consor-

tes” e filhos. Emerson e Luíza findaram por se acostumarem com a problemática e passaram

a viver intensamente, em especial para os netos.

Foi com assombro que, numa determinada sexta-feira, o Indivíduo recebia em sua casa, à noi-

te, a visita de renomado cientista sueco que residia nos Estados Unidos. Este lhe trazia  um

convite.

- Ficaríamos imensamente felizes se você pudesse acompanhar-me aos Estados Unidos.  Seu

caso é único no mundo e desperta o interesse para estudos de toda a genética mundial – Colo-

cou Doutor Enrico Prisma, que era descendente de italianos.

- Não sei, Doutor. Não quero me expor, embora não seja novidade para ninguém a dupla vida

que tenho e que, mesmo sendo dupla, faz-me plenamente feliz, pois amo de verdade meus fi-

lhos, “consortes” e, claro, meus pais.

- Tudo faremos para manter incólume sua intimidade, caso aceite ser nosso objeto de estudo.

- Objeto? Eu não sou objeto, Doutor, sou um ser humano, ainda que um pouco diferente dos

outros.

- Um pouco diferente? Ah, diferente demais dos outros. Como disse, é caso único no mundo e

toda uma comunidade científica tem o desejo de estudá-lo ( la ) – Disse o cientista.

- Não tenho resposta agora – retrucou enfático – vou conversar com meus “consortes” e com

meus pais, depois darei minha posição.

- Pense pelo lado bom – entusiasmou o cientista – você, caso aceite, dará uma importante con-

tribuição à Ciência.

- Por favor – Pediu o Indivíduo – retire-se, tenho obrigações a cumprir. Breve lhe informarei so-

bre meu pensamento a respeito.

- Até logo, espero que minha longa viagem não haja sido em vão – Falou o cientista.

- Passar bem!

O Indivíduo estava tremendamente indeciso. Por um lado, gostaria sim de dar uma   contribui-

ção à Ciência;  por outro lado não estaria bem consigo mesmo vendo sua intimidade ser anali-

sada e estudada por estranhos. Resolveu deixar que mais uma vez o tempo desse solução aos

conflitos. Na verdade, não desejava que nada fosse obstáculo à sua felicidade, mesmo que fos-

se diferente de outros seres humanos. Em seu íntimo habitava uma alegria inconfessável.

Engravidou pela terceira vez, mas perdeu o bebê num aborto natural. Passou por  sérios   exa-

mes e os médicos lhe disseram que não poderia mais engravidar, fato que, se ocorresse, poria

sua vida em riscos.  Portanto tomou bastante cuidado com seu lado feminino e,   embora  não

abandonasse suas relações íntimas com Venâncio, passou a evitar de todas as maneiras uma

nova gravidez. Já seu lado masculino estava em pleno vapor e, ao completar 23 anos, Simone

viria a engravidar pela última vez, trazendo ao mundo Fabiano. Por recomendação médica, Si-

mone ligou as trompas durante a ocorrência do parto cesariano, o último de sua vida.

Ainda permanecia na consciência do Indivíduo a visita do cientista que, embora não tenha ha-

vido outras, sempre o incomodava telefonemas e mensagens. O Indivíduo em nada se decidira.

Ao conversar com os “consortes” e com os pais sobre o assunto, todos foram unânimes  quan-

do afirmaram que se tratava de uma questão pessoal, que ninguém havia em si o direito de in-

terferir, fosse qual fosse seu julgamento. O Indivíduo temia pôr à vista de outros sua intimida-

de e, em consequência, a privacidade dos demais familiares. Certamente seria manchete e no-

tícia em todos os meios científicos e sociais e isso  abominava. Mesmo pensando assim, grande

curiosidade tomou conta de si. Por que nascera assim? Por que os dois lados eram compatíveis

a ponto de terem lhe dado herdeiros? Sua cabeça fervia, porém  continuava  na  mesma,   sem

qualquer solução e sem respostas.

Quando completou 30 anos, percebeu-se mais ativo ( a ) do que nunca. Seu lado masculino era

uma bomba sempre prestes a explodir; seu lado feminino mais e mais desejava Venâncio. Não

queria e nem podia prescindir de qualquer dos lados, posto que sua genética sexual  permane-

cia ativa. Chegou a uma conclusão: traria seus “consortes” para residirem consigo  no  mesmo

lar e, assim sendo,  tê-los-ia por perto a todo instante. Somente um detalhe a esse respeito  o

preocupava: a convivência entre Simone e Venâncio. Morria de  medo  que  se  entranhassem

movidos pelo ciúme. Por essa razão, marcou um encontro entre os três para que fossem diluí-

das todas as dúvidas e apreensões a respeito, pois de fato tudo isso monopolizava sua mente.

O diálogo entre os três foi cordialíssimo e todos aceitaram e concordaram por  uma  convivên-

cia em harmonia. Apenas teriam alcovas separadas,  porque o  Indivíduo  precisava   preservar

em distintos os ambientes conjugais. Assim se fez e se  consumou  em  grande  paz.  Os  filhos

foram que estranharam um pouco visto que enquanto os filhos de Venâncio  lhe  chamassem

de mãe, os de Simone lhe chamavam de pai. Tremendo  paradoxo  que  a  vida  impôs a  estas

criaturas. Apesar das diferenças, todos encontraram motivos suficientes para uma relação fa-

miliar sadia e saudável, especialmente devido à assistência dos avós.

Estava o Indivíduo gozando dos mundanos 35 anos quando, finalmente, resolveu-se a  aceitar

o  convite para viajar aos Estados Unidos e ser motivo de estudos e pesquisas. Não  levou  nin-

guém como acompanhante e, durante 24 meses, esteve ausente dos seus amores. Foi estuda-

do, analisado e pesquisado com vivo interesse pelo comunidade  científica  que  devotou  a  si

inteira atenção e cuidados. Ao retornar para junto dos familiares, estava prestes a  completar

38 anos de existência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                          IV

 

 

 

Recebido com vivas alegrias pelos familiares, o Indivíduo manifestava fadiga. Todos percebe-

ram que envelhecera bastante no período em que esteve fora. Seus cabelos  estavam  grisa-

lhos, havia “olheiras” em seu rosto e caminhava mais devagar que de costume. Venâncio não

se conteve.

- Parece cansada, Dany. Não foi bem tratada?

- Fui muito bem cuidada, amor. Acontece que pouco descansei nesse espaço de tempo,  esta-

va praticamente todos os dias à disposição deles, quase 24 horas por dia, pouco descansava,

apesar da forte  alimentação e cuidados médicos que recebia – Disse.  Onde  estão  meus  fi-

lhos? – Indagou.

- Todos à sua espera em casa, aí incluindo seus pais – Respondeu Simone.

- Olá, querida... Quanta saudade!

Os três se abraçaram e se voltaram para tomar o carro. Entraram e seguiram rumo à  residên-

cia. No meio do caminho, Venâncio interpelou.

- E os resultados dessa pesquisa em você?

- Nada foi revelado – Retrucou o Indivíduo – Disseram que estavam ainda em estudos e análi-

ses e que as conclusões seriam publicadas em revistas e órgãos especializados.

Verdade se diga: o Indivíduo não era mais o mesmo. Além de bastante cansado e carente, en-

contrava-se sem forças e sem interesse para o sexo, tanto por Venâncio como por Simone    e

estes logo notaram em si tais transformações. Nada disseram e resolveram entregar ao  tem-

po tais conveniências, esperando que as horas a serem  consumidas  dentro  do  lar  fossem o

antídoto necessário à recuperação do  Indivíduo.  Contudo  mais e  mais  o  Indivíduo   deixava

transparecer cansaço, rejeitava sempre  quaisquer  momentos  mais  íntimos.  Não suportando

esse estágio em que se achava a “consorte”, Venâncio, finalmente, tocou no assunto.

- O que há com você? Perdeu o interesse em nós?

-Não, meu amor. Tudo isto que está a acontecer eu já espetava. Os médicos deram-me estra-

nhos medicamentos e me preveniram de que tais  coisas ocorreriam – Respondeu o Indivíduo-

talvez jamais volte a sentir apetite sexual.

Venâncio estava atônito, não se continha.

- Eu a amo, Dany. Mesmo sem o apetite sexual, nunca a abandonarei. Você é a mãe dos meus

filhos e minha alegria de viver. Caso haja de ser assim daqui por diante, eu a compreendo e  a

aceito . O que importa é o que vejo em meu coração em relação a você.

- Agradeço, amor. Sempre soube que seu amor por mim não havia em si o sexo como  padrão.

Falou o Indivíduo – Preciso agora dialogar com Simone. Espero que haja  nela  a  mesma  com-

preensão que encontrei em você.

Os dias se passaram. Simone buscava não haver com Daniel tal tipo de conversação, estava so-

frendo muito, precisava bastante do aconchego com seu “consorte”.

O Indivíduo voltara a trabalhar normalmente, porém não havia em  si  a  mesma  competência

profissional. Faltava motivação, coragem e interesse pelas causas. Com isso, perdeu vários  cli-

entes importantes. Valia-se financeiramente dos ganhos de Venâncio e  da  renda  de  Simone,

já que ambos trabalhavam e, juntos, construíam uma vida estável, sem maiores  complicações

pecuniárias. Eram igualmente apoiados pelos filhos, todos formados e atuando com  assiduida-

de em suas respectivas áreas profissionais. Chegou um tempo em que o  Indivíduo  nada  mais

produzia. Estava quase dominado pela cegueira. Desconhecido mal abatia lentamente seu  or-

ganismo. Era amado ( a ) em profusão pelos filhos que não saíam de sua presença  e  sempre

se reversavam. O Indivíduo havia sido internado, sofria de uma doença totalmente desconhe-

cida e médico algum conseguia um diagnóstico preciso. Em poucos dias piorava seu estado de

saúde e passou a respirar à custa de aparelhos e já não reconhecia quem ao seu lado   estava.

Muitos dias se passaram nesse estado de saúde até que, afinal, seu  coração  parou  de  bater.

Morria o Indivíduo diferente, único no mundo e seu passamento trouxe a Venâncio, a Simone,

aos pais e filhos intenso sofrimento.

Passados os dias, aos poucos todos voltavam à rotina do cotidiano. Venâncio e Simone encon-

traram tempo para um diálogo sobre si mesmos.

- Simone, ninguém soube diagnosticar o mal que vitimou o amor de nossas vidas – disse – pos-

so até viver mil anos, todavia jamais alguém preencherá o vazio que ficou dentro de mim.

- Oh, Venâncio, digo o mesmo a você, nunca amarei a alguém como tive por Daniel em minha

vida. Estamos navegando pelas mesmas águas e não sei o que será do nosso futuro – Falava e

chorava amargamente.

- Veja, Simone, tanto eu quanto você desfrutamos do amor de um mesmo ser, pessoa diferen-

te e que nos deixou e em nossos filhos a mesma marca, a mesma lembrança. Estive pensando

muito em mim como em você e, em nome de Daniela e Daniel, proponho a você que nos case-

mos...

Pega de surpresa, Simone não sabia o que falar perante aquela possibilidade. Na verdade,   só

havia em si os filhos e realmente teria que buscar um novo lar, pois não fazia sentido ali    per- manecer. Levantou-se com as mãos a cobrir a boca, deu alguns passos pra lá e pra  cá,  depois  finalmente sentou-se e balbuciou.

- Não há amor entre eu e você, como quer desposar-me?

- Verdade que não nos amamos como dois consortes, contudo há entre nós um elo muito forte

que nos junta, que sempre foi uma ligação:  Daniel Daniela e os filhos que aí estão. Abracemos

o matrimônio e entreguemos ao tempo o sentimento que um  dia  chegará   até  nós. –  Propôs

Venâncio.

- Está bem, Venâncio, você me convenceu. Vamos nos casar e que seja o mais breve possível.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                            V

 

                                       Epílogo

 

 

 

Um mês depois realizava-se o entalece matrimonial de Venâncio e Simone. O fato encontrara

apoio em todos os filhos e nos pais do Indivíduo. Era importante que não se separassem   em

memória do Ser que houvera sido diferente, o único no mundo.

Embora não se amassem, respeitavam-se e, pouco a pouco, um determinado  sentimento   os

foi envolvendo. Conheceram-se intimamente e tal ocorrência abriu em seus corações a possi-

bilidade de um amor a ser correspondido de ambas as partes. Eram jovens ainda  e  muito  te-

riam que fazer, um pelo outro. Realidade que Simone não poderia mais engravidar, mas havia

naquela família um estigma e nada parecia impossível. Rompendo as adversidades do   desco-

nhecido, certo dia Simone amanhecera enjoada, vomitava bastante  e, tais sintomas, davam a

entender uma possível gravidez. Tudo se cumpriu e com os exames de praxe descobriu-se  que

mais uma vez Simone seria mãe e tal fato encontrou eco no íntimo dos cônjuges.

- Deus meu, como isto foi possível? – Indagava Simone.

- Para Deus nada é impossível, meu amor. – Colocou Venâncio – Não  se  esqueça  de  que  um

mesmo ser foi parelho em nossas vidas, tanto como mulher, quanto como homem.  Seus  dois

lados atuavam com excelência  e nos deram nossos filhos que são  muito  amados  por  nossos

corações.

- Verdade, Venâncio. Somos criaturas marcadas pelo tempo e cúmplices de um mesmo  amor,

amor que nunca se apagará de dentro de nós, é a chama viva que nos faz viver e olhar para  o

mundo de uma forma diferente. Hoje posso dizer a você que, com a convivência íntima  entre

nós dois, aprendi a amá-lo um pouco, no entanto ainda não é aquele amor que remove   mon-

tanhas. – Confessou Simone.

- Fico feliz em ouvir isto de você. A mesma coisa digo: há em meu âmago um novo sentimento,

é um amor que como o seu, não é aquele capaz, ainda, de tudo suportar, mas que já é um bom

começo. Agora vem por aí um novo herdeiro, coisa que nos unirá mais e mais.

Abraçaram-se e se beijaram com sofreguidão. Uma nova vida se descortinava em ambos os ca-

minhos e as flores do jardim estavam mais belas e viçosas.

 Exatamente nove meses mais tarde chegava ao mundo um casal de  gêmeos  que  encheu   de

profunda alegria aquele lar. De comum acordo deram os nomes aos gêmeos: foram  batizados

de Daniel e Daniela em homenagem póstuma àquele ou  àquela  que  um  dia  iluminou  a  vida

do casal.

Nenhuma outra anormalidade foi escrita no seio daquela família. Tudo parecia mais  que   nor-

mal e os dois seguiam o destino de um futuro que prometia ser promissor.

Todos os descendentes do Indivíduo eram exímios profissionais em suas áreas de atuação. Ve-

nâncio era médico e excelente cuidador dos males alheios. Um dia chegou em sua casa um en-

velope destinado aos pais do Indivíduo. A procedência era americana e logo todos ficaram    a

saber: finalmente a comunidade científica se manifestara  e tudo vinha assinado pelo emérito

cientista Enrico Prisma. Foi Venâncio quem fez a leitura e os comentários visto que era médico

e entendia o que ali se achava escrito.

“Não há qualquer informação importante a fazer, embora  tenhamos  pesquisado  o  Indivíduo

detalhadamente. Seu organismo é normalíssimo como o de qualquer ser humano. Suas células

não apresentam diferenças, multiplicam-se dentro dos parâmetros da normalidade. Somente

não se compreende como um ser humano aparentemente normal possa possuir os dois lados

da sexualidade e, em ambos, uma anatomia tão perfeita. É como se fossem dois  seres  distin-

tos, entretanto os dois lados estão no mesmo patamar. Por mais estudos que façamos jamais

conseguiremos descobrir tal segredo. Não há como, faltam-nos  dados  mais  precisos,  nunca

se teve conhecimento de algo similar. Confesso que tudo o que fizemos retornou ao ponto de

partida: estaca zero. Só nos resta acreditar e esta é a melhor alternativa, que tudo se deve   à

Providência Divina, fato que a ciência dos homens, por  mais  evoluída  que  esteja,   não  tem

meios para diagnosticar, por mínima que seja, qualquer alusão concreta sobre o caso. Por  is-

so, damos por encerrados tais estudos e que, se for da vontade do Altíssimo, que nos apareça

outros seres semelhantes a fim de que  possamos  sequenciar, ou  melhor,  iniciarmos   novas

pesquisas, posto que de nada sabemos a respeito.”

Venâncio quedou-se pensativo. Em sua consciência tal fato era mirabolante e, mesmo um dia

tendo prometido a si mesmo desvendar este enigma, em seu íntimo sabia que jamais alcança-

ria tal resposta. O jeito foi conceber na totalidade com o que naquele papel  estava  escrito   e

entregar à Divindade os segredos da natureza.

Era domingo e o dia estava lindo. Venâncio que comprara um carro novo e dos grandes,  colo-

cou todos dentro do automóvel e partiu para um passeio. Todos gozavam de intensa saúde  e

mesmo Emerson Bantz e Luíza sorriram ao se porem com contato com a luz do sol.

A alegria era fator comum no cotidiano daquela família.

 

 

 

 

                                                                             FIM