joaquim cesario de mello

CANTILENAS DE UM VELHO POETA

 

Sou poeta das horas inteiras

dos momentos adversos

da mudez das paredes alvas

do segredar confidente dos ventos

dos intervalos alongados dos minutos

e do pasmar inesperado dos acasos

 

Sou poeta dos interiores ocultos da alma

dos escaninhos das memórias não lembradas

onde se escondem o seio da minha mãe

o ciúme de quando descobri que ela era casada

meu primeiro dente de leite arrancado

e a vela que não apaguei

em meu mais primitivo aniversário

 

Sou poeta das noites claras

dos travesseiros acordados

em que sonhos ficam enfronhados

das companheiras sombras matinais

das madrugadas embriagadas

e das loucuras mais desvairadas

 

Sou poeta dos beatos não santificados

dos pecados secundários

do inconfessável dos confessionários

das conversas fiadas e dos tiques bizarros

dos deuses mortos que ficaram para trás

em Atlântidas submersas e afogadas

ou em bibliotecas incendiadas

embaixo do horizonte avermelhado da Babilônia

que há milênios já não existe mais

 

Sou poeta dos antepassados

dos paralelepípedos manchados de histórias

das viúvas e dos órfãos deixados

dos desejos espirrados nos lençóis

do transpirar dos segundos fatigados

do calmo envelhecer dos retratos

dos sopros que vêm do passado

e do azulado bailar dos fogos fátuos

 

Sou poeta dos arco-íris das jujubas

do escorregar dos dias nos parques

dos rastros no céu onde as nuvens passam

do inquieto andar das formigas nas calçadas

do enrugado olhar das janelas

das folhas secas em cima dos telhados

da solidão dos prédios abandonados

e do desmaiar das tardes alaranjadas

 

Sou poeta

porque sou brotado do ventre dos livros

e com o destino nas estrelas traçado

para ver a vida como se estivesse no telhado

lá por cima aqui por baixo e por todos os lados

e se não tivesse nascido poeta

então com certeza seria alado