Eu tenho a fome dos saciados
a lucidez dos embriagados
a certeza dos incautos
e a insanidade dos homens normais
Eu tenho a alegria de ser triste
a inquietude dos acomodados
a pressa lenta dos afobados
e as mãos parecidas com as do meu pai
Eu tenho a rebeldia dos mais jovens
os cabelos brancos da minha idade
e se nasci com o cérebro pequeno
minha alma já se achava grandiosidade
Eu tenho a coragem dos medrosos
que dormem calados nos quartos escuros
rezando terços escondidos
para um deus mais ateu do que eu
Eu tenho a confusão da ambiguidade
a oscilação dos equilibristas descompensados
o desvario quixotesco dos congruentes
e a ponderação dos insensatos
Eu tenho em mim o amor da minha mãe
as palmadas que devia ter levado
a inocência original dos culpados
e a trela disfarçada dos meninos comportados
Eu tenho a avidez desejante dos pacatos
o contrassenso dos sensatos
a inconsequência dos comedidos
e a bisbilhotice dos desinteressados
Continuo o mesmo por ter mudado
ainda uso calças e camisas apertadas
em um corpo envelhecido e engordado
e trago no meu futuro meu presente passado
E se penso com as mãos
escrevendo com a cabeça
foi porque meu anjo da guarda
ficou manco caindo da escada
Minha esposa sempre diz
que eu sou todo errado