O sino majestoso da pequena igreja central soou doze vezes, ecoando por ruas escuras e becos ocultos. No centro de uma praça arborizada, acima de um lance de escada, sob o gramado macio recentemente irrigado, a igrejinha se ergue, como um monumento tímido, pequeno em tamanho, grande em sua história. Suas portas voltadas para um hospital público contempla os mais diversos sentimentos humanos, a dor de quem sangra, o desespero de quem se curva ao luto, o medo da incerteza e a felicidade do nascimento.
Depois de um dia cheio de trabalho, a vida atravessou a rua e sentou-se na escadaria da igrejinha, cansada suspirou, abriu o livro e rabiscou mais um nome para sua lista dos nascimentos. A vida tem a aparência de uma mulher de trinta anos, cabelos longos e cacheados, pele cor de obsidiana essencial, olhos pequenos e misteriosos, lábios grossos avermelhados, veste uma túnica branca e trás um livro em suas pequenas mãos. Seu rosto ressaltado com a cor da natureza que se assemelha a maquiagem, e o brilho natural das estrelas como purpurina brilham sua pele sedosa.
De repente a morte atravessou a porta automática do hospital, seguida por uma família em tristeza profunda. O grupo atravessou a rua e se reuniu diante da igreja enquanto a morte senta ao lado de sua rival no degrau desgastado. A morte se apresenta de forma caricata, corpo esquelético, envolto em uma túnica negra levando uma foice nas mãos. Em algum momento se identificou com o imaginário humano e se adaptou a imagem fria que lhe foi dada.
Apesar de seu rosto de ossos não demonstrar emoções, a vida notou a felicidade implícita em sua antagonista enquanto observa a família lamentar o pesar do luto. Incomodada, a vida se gabou das vidas que presenteou.
-Dei a vida para nove bebês - disse ela com um largo sorriso - Fiz nove famílias felizes.
-Que bom.
O desdém da morte a deixou ainda mais inconformada.
-Como pode se deliciar com a morte de alguém? Sorrir enquanto essa família chora? Que tipo de demônio desalmado você é?
A morte não respondeu, apenas se levantou e se afastou lentamente, desaparecendo no breu noturno deixando o ar frio e mórbido para trás. De repente os familiares abafaram o choro e começaram a falar.
-O Papai viveu muito bem - disse um homem - teve dois casamentos felizes, viajou o mundo, teve seis filhos que foram o mundo para ele.
-Realizou seus sonhos se tornando um empresário - disse a outra filha - mas nunca se esqueceu da família e dos amigos.
-Chegou aos oitenta e seis anos saudável - disse a ex esposa.
A vida saltou dos degraus irritada, como a morte pôde interromper uma história tão incrível?
-Mas a idade o debilitou muito nestes últimos meses - disse o filho - o câncer o consumiu muito rápido e a dor estava insuportável, ele precisava de um alívio.
-Sim - a filha concordou - Apesar da tristeza que sentimos, temos que ter em mente que o papai está livre de todo sofrimento causado por essa doença horrível. Ele descansou em paz depois de ter feito a vida valer a pena.
De repente a vida teve um insight, aquele ser que julgou ser sua rival, por destruir tudo que ela criava, não era uma vilã, pois dava as suas criações o que a vida não podia dar, o alívio da dor terminal. Pereceu também que por milhares de anos, ela viu apenas o começo da criação, mas não sabia como elas terminavam, as decisões que tomam, as conquistas, derrotas, lutas e marcas que deixavam na história. Desse dia em diante, a vida passou a visitar necrotérios, sentar-se em gavetas frias para ouvir por horas a morte contar de forma orgulhosa a história de suas criações. E por ironia, a morte tem mais orgulho da vida, do que a própria vida. E as vezes, mais do que admite, a morte vai a maternidade também, só pra ver como tudo começa, se Inclina sob um bebê e sussurra.
-Faz sua vida valer a pena, porque dá próxima vez que nos encontrarmos, quero ouvir uma história boa. Mas não conta pra ninguém, é segredo.
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