Eu hoje vi o tempo. Ele estava na superfície das coisas findas: as demoradas, as tardias, as breves e as apressadas, as longas, as precoces, as morosas, as decorrentes e as ligeiras.
Vi o tempo escapado dos relógios e dos anuários, que corre afastado dos horóscopos e dos jornais, dos números e dos ponteiros, o tempo oculto dos calendários, translúcido e diáfano como são os átomos e os segundos.
Vi o tempo na porta descascada do quarto, na mancha de mofo na parede que ali ontem não estava, na rua esburacada de chuvas e tráfegos, no choro da filha recém-nascida do vizinho, e no rastro de pó de madeira deixado pelos cupins. E ele estava tão guardado nas caixas onde conservo retratos e que ali me disfarço de furtivas imortalidades ainda não roídas pelas traças do tempo.
Vi o tempo no homem comendo melancia enquanto dobrava a esquina, e também na mosca que mora na cozinha e estava crescendo. Vi o tempo sendo carregado nas folhas que as formigas levam aos formigueiros, nas nuvens se decompondo ao vento, no murchar gradual dos crisântemos, no marrom das bananas na fruteira, nos besouros-de-maio que os peixes se alimentam.
Vi o tempo no espelho do banheiro. Ele estava ressecado, flácido e enrugado, e eu estava nele aos poucos desaparecendo como o escuro dos poucos cabelos que ainda me restaram e que agora estão ralos, encanecidos e reduzidos de melanina. E assim como Cecília Meireles, este rosto não era ontem assim tão árido, fatigado, nem meus olhos estavam engordurados de dias e as pálpebras arriadas como se estivessem amargas, tristes e vazias. Também não me dei por esta transição e provisoria mudança.
Vi o tempo na latência do mundo, espremido no exíguo espaço entre o antes e o depois. Ele tem o cheiro amendoado dos livros velhos e o sabor azedo do leite esquecido na geladeira. Eu o vejo no silêncio mastigante das traças e no toque endurecido e enferrujado das tesouras. O tempo é líquido, constante e fluido - se fosse feito de água seria um rio a desaguar em um oceano vazado, abissal e seco.
Vi o tempo se prolongando na memória, multiplicando-se de passados colados nas amuradas mais remotas das minhas entranhas. Um tempo inchado, abundante e dilatado como uma bolha a se agigantar até o espinho do meu último momento. Este é o tempo que vive a se infiltrar em meus repentinos presentes.
Eu hoje vi o tempo. Ele bateu no vidro da janela me acordando