Hoje acordei suspeito de mim
como um estranho a ocupar
meu lugar no interior do corpo
Quem é este que agora me aloja
e que aqui não estava na década passada?
O que aconteceu comigo ao longo dos anos
para desaparecer como era, sem nem me avisar?
A minha anterior exata face o espelho já não revela
e embora ainda que pareça um pouco comigo antigo
não consigo me reconhecer no hoje em que me vejo
(Os lagos encolheram
ou será que foi meu Narciso
que diminuiu de tamanho?)
Até o amor eterno foi destronado
e em seu lugar impera o amor terno
afinal a perenidade tem seu prazo de validade
enquanto o que é terno germina, cresce,
floresce, matura, continua e permanece
(A ternura é bem mais dilatada e prolongada
que a ilusão passageira da eternidade)
Que aconteceu com minhas crenças
minhas certezas e outras tantas veracidades
que em uma década em mim se dissiparam?
(Talvez esteja certo Karl Marx ao afirmar
que tudo que é sólido se desmancha no ar)
Eu não me dei conta da mudança
que em mim revogou meus passados decretos
que anulou o que antes era o absoluto certo
que suprimiu meus perfeitos indubitáveis
e que foi além das inabaláveis verdades
Em dez anos dez anos se passaram
e quando me dei conta
acordei suspeito de mim
como se fosse um estranho
a me ver nos espelhos do ontem