joaquim cesario de mello

UM ESTRANHO NO INTERIOR DE MIM

 

Hoje acordei suspeito de mim

como um estranho a ocupar

meu lugar no interior do corpo

 

Quem é este que agora me aloja

e que aqui não estava na década passada?

 

O que aconteceu comigo ao longo dos anos

para desaparecer como era, sem nem me avisar?

 

A minha anterior exata face o espelho já não revela

e embora ainda que pareça um pouco comigo antigo

não consigo me reconhecer no hoje em que me vejo

      (Os lagos encolheram

      ou será que foi meu Narciso

      que diminuiu de tamanho?)

 

Até o amor eterno foi destronado

e em seu lugar impera o amor terno

afinal a perenidade tem seu prazo de validade

enquanto o que é terno germina, cresce,

floresce, matura, continua e permanece

    (A ternura é bem mais dilatada e prolongada            

    que a ilusão passageira da eternidade)

 

Que aconteceu com minhas crenças

minhas certezas e outras tantas veracidades

que em uma década em mim se dissiparam?

      (Talvez esteja certo Karl Marx ao afirmar

      que tudo que é sólido se desmancha no ar)

 

Eu não me dei conta da mudança

que em mim revogou meus passados decretos

que anulou o que antes era o absoluto certo

que suprimiu meus perfeitos indubitáveis

e que foi além das inabaláveis verdades

 

Em dez anos dez anos se passaram

e quando me dei conta

acordei suspeito de mim

como se fosse um estranho

a me ver nos espelhos do ontem