Será que a casa em que morei pequeno com meus pais
ainda se lembra de mim
daquele menino magro de costelas à mostra
de cabelos rigorosamente penteados
sempre de calças curtas acima dos joelhos
que brincava sozinho na imensidão dos corredores
onde lá deixou sua única e remontada infância?
Será que em suas paredes engorduradas de décadas
manteve no escapar vaporoso dos anos
as marcas dos meus dedos encardidos de criancices
sujando de inocências a brancura dos tijolos tingidos
como um pré-histórico nômade doméstico
a pincelar de pinturas rupestres a sua passagem no tempo?
Será que suas solapadas fendas e discretas frestas
conservam os tesouros que ali enterrei
caprichosamente embrulhados dentro de um baú de sonhos
como aquelas conchas e os búzios que trouxe da praia
naquela furtada tarde de um sábado de novembro?
Será que suas abertas janelas verdes de madeira
reconhecerão por detrás deste corpo gasto
o garoto que nas noites em claro nelas debruçado
olhava espantado o néon azulado dos fogos fátuos
que emanavam do cemitério que lhe ficava à frente?
Será que as telhas do telhado que me acobertaram
até hoje recordam dos meus aniversários
nos quais a cada ano as velas aumentavam
no desaparecer gradual da minha meninice?
(Não sabia que aniversários eram celebrações de despedidas)
Será que a casa em que morei pequeno com meus pais
ainda se lembra de mim?