Eu me aproximei daquele quadro, juro que sem querer, como que atraído por força inexorável, me vi diante daquela pintura, que não tinha forma, mas que continha todas as vidas pelas quais eu havia passado. Encontrei nele estranhas paisagens, densas e estéreis paisagens, ricas de ódios incontidos e amores ressentidos que se partiram em milhares de pedacinhos ao caírem de altura inimaginável e que jamais poderiam ser juntos novamente, tintas de todas as cores, cores que eu não conhecia, jamais havia visto. Cheiros da infância, dos seios de minha mãe que me amamentava, do suor de meu pai quando retornava do trabalho, dos dois abraçados me concebendo, gostos da meninice, de minhas lágrimas que escorriam para a minha boca, sons das cantigas de ninar, das primeiras rezas, da aspereza dos carões, dores de quedas e primeiros dentes nascidos, das primeiras palmadas, inocência, pureza. Da adolescência e suas descobertas, incertezas, solidão e angústias, raiva de quem pressente toda a sorte de provações que estão por vir. E agora, adulto fugitivo que teme ser recapturado e ter que voltar para as masmorras que sua própria consciência construiu. Vislumbrei sombras e luzes agrupadas, cintilantes e opacas, convergentes e difusas, que espalhavam medo e desejo em perfeita sintonia, que iluminavam cômodos que eu jamais pensei existir em minha alma, que eclipsavam e não me deixavam ver o que eu desde sempre procurei.
Aquela pintura, que me apontava o caminho de paraísos distantes, desejos proibidos e indomáveis, insaciáveis e verdadeiros. Que fazia pulsar em meu peito a sensação de completa felicidade, perda do pouco domínio que eu já tivera sobre todas as minhas emoções, total e absoluta falta de culpa. E me apaixonei por aquele quadro, por aquela pintura que me fez prisioneiro do seu reino etéreo e fascinante, de suas entranhas que se tornaram meu alimento, de sua vontade que unida a meu desejo nos tornou um só. Eu havia enfim encontrado o mundo ideal, o lugar em que vida e morte não se apartavam, dor e prazer entoavam o mesmo canto em uníssona melodia.
Desde então, nunca mais fui o mesmo, me afastei de tudo e todos, ansiando desesperadamente pela fuga derradeira, abandonei o mundo que sempre desprezara, as pessoas por quem nunca nutri afeto, renunciei a todos os prazeres do qual nunca me senti fazer parte. O mundo com suas convenções e relações efêmeras, com seus trajes fantasiosos, máscaras de falsa beleza que escondiam atrás de si rostos enrugados de tédio, aversão, apatia e angustias inconscientemente negadas.
Por fim resolvi fazer minha travessia do Rubicão, a sorte estava lançada, a decisão não era difícil, mas era sem volta. E assim procedi, despido de prudência, lancei-me incontinente, mergulhei sequioso, peguei a estrada sem olhar para trás, certo de que jamais retornaria, seguro que havia descoberto o mais perfeito dos mundos e que lá eu reinaria sozinho.
Um quadro de adorno atrativo, hipnotizante, uma ilusão no meio de tantas ilusões, aquela pintura...Eu não sou digno de viver em mundo algum, o imaginário, o mundo com o qual eu tanto sonhava, aspirava como cura para minha doença, em nada se mostrou melhor que o mundo real. Não havia paraíso, não me proporcionava deleite e visto agora tão de perto, era tão estéril quanto o mundo real, tão caótico e preguiçoso, entediante e vulgar, sujo e soturno.
Cheguei a triste conclusão, que não há quadros magníficos nem projeções fantasiosas que me façam fugir do mundo triste que construí para mim. Seja em que mundo for, serei sempre escravo da própria angústia, cativo da própria revolta, exilado, deslocado, sozinho.