Não lembro quando ela chegou aqui, mas, a paz já estava tão grande, aumentava de tamanho a olhos vistos. Suas longas madeixas reluziam, seus olhos de todas as cores brilhavam, crescia forte e saudável, brincava solta e comia de tudo, dava gosto de se ver, estava gordinha sem correr o risco de se tornar obesa, saudável, a paz nunca havia contraído um simples resfriado que seja, era carinhosa, amorosa, era alegre e festiva, inteligente e espirituosa, era atenciosa, bastava chamá-la que ela já vinha a seu encontro, não tinha um nome, tinha todos os nomes e atendia por qualquer um, escutava tudo com invulgar atenção, falava sempre e tão somente o necessário.
Não dava despesa ou preocupação, não chegava tarde em casa, não dava trabalho para acordar nem para dormir, não reclamava quando chegava a hora de tomar banho, a paz era perfeita, estava sempre ao meu lado mesmo quando parecia ausente, povoava meu mundo, visitava meus sonhos, vigiava minha casa, acalmava minha alma. E assim, seguíamos em comunhão que parecia eterna, eu e a paz, a paz e eu, amigos, irmãos, pai e filha, homem e mulher, casados, amantes, cingidos de felicidade, de amor, de cumplicidade, de lealdade, em mais que perfeita combinação.
E quanto mais ela crescia, mais bela se tornava, e quanto mais bela se tornava, mais feliz me fazia, e quanto mais feliz eu me tornava, mais orgulhoso eu me sentia, e de uma hora para outra, assim como do nada, comecei a sentir medo de perdê-la. E esse medo começou a me tirar a paz, minando lentamente todas as forças que julguei ter e roubando todos os momentos que eu deveria desfrutar ao lado de tão venturosa companheira.
E esse medo começou a me fazer perder a paz, e minha vida, outrora tão ditosa, tornou-se assombrada pelo desânimo e pelo pânico que me tornaria prisioneiro de meu próprio egoísmo, egoísmo esse que, filho de minha pequenez, me fez tornar-se algoz da paz que tanto eu amava. Meu egoísmo e minha vaidade, ajudaram-me a construir uma prisão no qual eu pretendia aguilhoar a paz, prendê-la com a desculpa de proteger, achando-me dono e senhor da mesma. E assim procedi, ergui altas e espessas paredes e confinei-a com a melhor das intenções, ali nada lhe faltaria, ela não seria minha prisioneira como alguém a princípio poderia pensar, esse seria nosso santuário, nosso esconderijo, nossa morada tão caprichosamente fortificada, provando minha gratidão e declarando meu amor, eu cuidaria da paz até o fim de meus dias. Nada nem ninguém poderia roubá-la de mim, jamais a fariam mal, era tão somente minha, quem quisesse ter alguma parecida ou igual que procurasse e se fizesse merecedor.
Assim eu pensei, achei que a paz caberia dentro de mim, achei que poderia abrigá-la e obrigá-la a servir aos meus caprichos, me enganei pensando ser seu dono, perdi-a, pois fui incapaz de compreender sua grandeza. E antes generosa, antes solícita, antes deslumbrante, antes fulgurante, leal, amiga, companheira e cumplice, a paz tornou-se serva descontente, indiferente, prisioneira que a cada dia definhava em agonia silenciosa, em martírio doloroso, em desgosto lento e irreversível.
Aos poucos morreu a paz, com olhos opacos que me fitavam- e eu não saberia mais dizer que cor tinham- morreu prisioneira de minha insensatez, libertando-se enfim de meu julgo inferior. Com certeza renasceria ao lado de quem saberia desfrutar de seu valor, ao contrário de mim, que nunca soube verdadeiramente saber quem ela era, indigno que sempre fui em tê-la dentro de mim.