INSTANTES DA VIDA REAL (XXXIV)
O dia amanhecera coberto de azul. Mas, um azul diferente, mais real, mais perfeito, lembrando talvez o que representa, no imaginário popular, o céu ou qualquer lugar que exista acima das mazelas do mundo carnal. A brisa, como há muito não se via, soprava ventos que rescendiam na própria natureza, pois que pareciam exalar perfumes que lembravam plagas desconhecidas, dimensões fictícias de cinema. A montanha, ao longe, erguia-se a descoberto. Seu tom também azulado, porém, mais escuro – uma espécie de “ton sur ton” dava um aspecto impressionante à paisagem que parecia saída de um conto de fadas.
Era um sábado. Fazia um frio gostoso e Adamastor saiu a caminhar... Adamastor era um cara simples, às vezes até simplório, tinha a mania de acreditar nas pessoas, até no amor cria, ainda. Talvez, por isso, acreditara até em políticos. Era metido a poeta também, e, por causa disso poderia ter feito um poema, pensou. Cantar aquela cena rara em verso ou prosa, talvez trovar amor com cor ou, quem sabe, amor com dor. Mas, abdicou da ideia, pois que o tema lhe pareceu muito comum e bem decantado.
Ganhou a Avenida... Já de algum tempo trazia na mente uma imagem que se acostumara a ver. Na verdade uma fotografia que, embora não lhe tivesse sido ofertada, era de certa forma do domínio público, pois que fora a própria dona que a postara, muito embora não fosse ela nenhuma celebridade. Ao contrário era uma pessoa comum que apenas figurava, junto com mil outras, em sítios da preferência de ambos.
Mas, diga-se a bem da verdade, era de uma beleza singular. Seus olhos, apenas pela foto, deixavam à mostra uma personalidade que lhe intuía alguma raridade. Impressionara-o mesmo, chegando ao ponto de tomar-lhe, diuturnamente, horas de trabalho, o que não o incomodava em absoluto. Adamastor não era apegado à matéria, o espírito lhe importava mais. Era um sonhador que vivia no tempo errado, acho, e, não conseguira ainda desvendar aquele mistério, pois que assim o considerava. Na verdade era coisa que nunca o acometera, embora acreditasse piamente em empatias à primeira vista. Mas, jamais pensara tanto em alguém que nunca vira de perto, com quem não convivera, e, de quem apenas escutara a voz algumas vezes, pudesse despertar-lhe tal sentimento. Aliás, diga-se, por justiça, que ela era a própria encarnação de Calíope, a Musa grega, já que aquela voz admirável, parecia solfejar notas de amor e desejo em seu falar. Uma doçura firme e vibrante que lhe tocara a alma. Nunca ouvira aquele tom vocal de mulher alguma, por mais que tivesse escutado tantas e tantas.
De repente se deu conta de que passara a pensar nela ao mesmo tempo em que admirava e a colocava, inconscientemente, como moradora da paisagem que se descortinara naquele dia. Achava estranho, muito embora, em sua simplicidade, ele acreditasse em vidas passadas e de encontros repentinos onde essas simpatias ou antipatias, ora para o bem, ora para o mal, ocorressem com frequência na vida de toda gente. Mas, era intrigante este caso, diferente, pois que tal empatia se dera sem qualquer encontro presencial entre ambos.
Seria, então, isto o que poetas denominam amor platônico, pensou... É certo que já se havia apaixonado por sua professora de inglês dos tempos colegiais. Porém era certo também que aquela ele via quase que diariamente na sala de aula. Entretanto, isto era outra coisa. Não era mais colegial e já aprendera muito nesta vida.
Ainda sem destino certo parou em um Shopping e resolveu tomar o café matinal, o que não era muito usual. Sentou-se à mesa de uma cafeteria de aspecto aconchegante e convidativo. Pouca gente transitava àquela hora.
Mal se acomodara, e, logo, um susto inesperado, como se todos não o fossem; bem perto dele a figura de uma mulher prendeu-lhe o fôlego. Jovem em seus quarenta e poucos anos- talvez nem isso- era a própria foto, a sua foto, só que com vida, real, elegante, com a mesma beleza invulgar. Estava ali, à sua frente, talvez dois metros de distância. Embora ela tivesse os olhos voltados para um livro que abrira em sua mesa, não tivera dúvidas. Era o mesmo olhar da imagem, os mesmos cabelos meio que comprido castanho escuro. Tudo reforçou sua impressão primeira.
Porém, sentindo como era de se esperar, aquele olhar fixo e indiscreto ela parou a leitura, e, retirou os óculos. Adamastor, totalmente sem noção, só percebeu sua atitude indelicada quando ela, entre curiosa e receosa, talvez para tomar pé da situação meio constrangedora perguntou-lhe: “Você é advogado”? Adamastor, que às vezes se perdia na distração, caiu em si, pois positivamente, apesar de suave, não era a mesma voz.
Então, com a perspicácia que a profissão lhe ensinara, vendo que a moça folheava um exemplar da Constituição Brasileira, despistando, ele, que era de fato e de direito advogado, retrucou-lhe: “- Sim, e penso que nos conhecemos de alguma audiência, não”? Achou que tivesse se saído bem. Não se saíra, pois ela respondeu: -“Acho que não, pois não sou advogada”. “Apenas estudo isto aqui por necessidade de concurso, e nada estou entendendo”. Mas, a conversa fluiu sem que se dessem conta e sem que ele esperasse.
Dai para frente Adamastor passou a explicar-lhe o que sabia durante um mês que transcorreu na rapidez do pensamento. Passado este tempo ela fez seu concurso, passou e foi trabalhar no Distrito Federal, bem longe dali. Ainda conversaram por um tempo, mas mil quilômetros são muita coisa, até mesmo para a internet.
Entretanto Adamastor não esquece jamais aquela fotografia. E, sempre que passa por aquela Avenida volta seus olhos para dentro e finge que realmente estiveram juntos- ele e a dona da foto - numa manhã esplendorosa e cheia de vida naquele Café do Shopping.
Nelson de Medeiros