no fim da noite entrei no armazém vazio
paredes altas e fileiras de vidros quebrados
o teto é um emaranhado de telhas lascadas
a chuva encheu de poças o chão
pombos morcegos ratos e baratas
cheiro acre de algo abandonado
a perspectiva desta espécie de morte é linear
nasce no piso sujo e sobe pelas colunas de madeira
pousa nas tesouras que apoiam o teto combalido
depois fixa na mancha da parede
a nódoa é pareidolia que lembra ferimento
coração dilacerado e dor profunda
pouco abaixo uma fenda revela ferros e tijolos
ossatura de prédio-vida com destino selado
o escuro do planeta nasce no rasgo do tecido sólido
deve ser uma fase da dor que cria a lacuna física
aumenta com o tempo e espalha como líquen
ele vai se sobrepondo até formar um bloco negro
eu só preciso abandonar esta visão
procurar o refúgio da terra iluminada
uma casa que contenha o conforto de ser amado
o bloco preto avoluma e invade a vida
espalha ferragens de automóveis entre os corpos
dilacera o inseto ingênuo que repousa no girassol
guia a mão que empunha as armas tristes das palavras
eu me afasto para essas colinas internas
mas aqui em cima não é refúgio porque também dói
abaixo do céu a seara está se afogando
abaixo da vida as pernas cambaleiam
não vejo nada lá embaixo que perdure
ainda empilham caixas contendo soluções
mas elas vão à deriva pois o pranto é um dilúvio
a lágrima é a base de tudo e forma a película ríspida que fere
eu volto para o que sou
mas a pequena parte de mim que sorri sabe que nem me gosto mais.