//meuladopoetico.com/

Dr. Francisco Mello

O GAÚCHO CAMPEIRO E A FORÇA DO AMOR

 

Será que um gaúcho grosso, tem a vê com história de amor? Se tu leres este texto, irás rir muito, e ao final, é quase certo que desejarás escrever histórias como esta. Aqui pra nós, é engraçado, cheio de gafes, meio assustador, mas, acima de tudo romântico. A linguagem é gauchesca e tradicionalista, o que ao meu vê alegra este conto.

Licurgo era gaúcho de São Nicolau, Região das Missões, fronteira com Argentina. Um gaudério do bem. Tinha pouco estudo, meio xucro, mas era bonito, honesto e trabalhador; ganhava a vida como cabanheiro, peão de estância, e aos finais de semana animava bailes de corredor e fandangos de galpões tocando uma gaita botoneira de oito socos.

Dizia que não tinha sorte no amor, porque era bagual e não manejava a arte do fino trato com as gurias. Contudo, não ligava pra isso, visto que o Patrão da Estância Celeste é quem sabia o tempo e a hora de se apaixonar e constituir família.

Havia passado por duas experiências afetivas, dolorosas. A primeira, com Mariana Moretti Rizzo, uma chinoca linda, e educada a quem ele brincando chamava de querendona. Era mesmo uma potranca. O pai dela era um fazendeiro da cidade de São Borja, de origem italiana, por nome Antonello.

Depois de jurarem amor eterno, ele comprou as alianças, encilhou o pingo e aportou na fazenda. O velho o recebeu bem, lhe serviu um chimarrão, depois um vinho, mas, na hora que Licurgo falou em noivado, Antonello mascou o freio, como se diz no Sul, alegando que Mariana era nova para casar, e, além do mais, tinha que fazer um doutorado em Santa Maria.

Sugeriu que Licurgo retornasse à São Nicolau, estruturasse sua vida financeira e, como o futuro pertence ao Celestial, o ideal seria esperar. Ele ficou tristonho, mas por gostar da Mariana, despediu-se em alto estilo: Abraçando seu Antonello, profetizou “Estou saindo de vereda, mas algo me diz que ainda nos veremos; não tá morto quem peleia. Paz e bem”.

Beijou Mariana e contou como havia sido a conversa, ela ficou cabisbaixa e explicou: meu pai não entende de amor - minha mãe que o diga - é materialista, conservador e não permite que eu me case antes de me doutorar. Sendo assim, vamos dar um tempo. Gosto de ti, mas vamos dar curso às nossas vidas e o que tiver de ser será, com Deus na frente sempre.

Mas que tal! Exclamou Licurgo, porém concordou, não tinha outra opção. Quase sem chão, abraçou Mariana, e mirando seus olhos largou uma frase profética “HÁS DE SER MINHA; não te sufocarei, mas me manterei interessado em saber tudo sobre ti; jamais me furtarei a ajudar-te se preciso for; sou um gaúcho que não costumo deixar churrasco exposto pra cachorrada”.

Lá se fora um ano e meio, então sobreveio a segunda avalanche amorosa na vida de Licurgo. Em um baile de fronteira na cidade de Santo Ângelo, conheceu Olga Hack Schultz, de família alemã, produtora de vinho em Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha.

Com sua beleza e habilidade no sarandeio, Olga encheu os olhos de Licurgo. Charlaram, e se amaram. Ela retorna à Nova Petrópolis, cruzando o Estado de Noroeste a Leste, e ele volta pra estância ligeiramente apaixonado.

Os amigos o notaram mais feliz e lhe perguntaram o motivo. Licurgo respondeu. Bugrada, cada cambicho que arranjo é um palmo e meio que eu cresço; arrumei outra prenda, flor de cabeceira; lindaça por demais, Olga Schultz, lá da Serra, estou grandão, viu. Causou uma baita risadaria.

Comunicavam - se com frequência; Licurgo vivia tapado de saudades, mas, a distância de São Nicolau à Nova Petrópolis é de 600 quilômetros, e, para quem priorizava o modal “cavalo crioulo”, era difícil à visitação, uma judiaria!

Por duas vezes Licurgo visitou sua prenda. Procurava ser amável, porém lamentavelmente percebeu que a família dela era orgulhosa e discriminadora, em relação ao povo das Missões, Campanha, e, Fronteira.

Passaram-se quatro meses, planejou visitar Olga Schultz na próxima semana, porém no sábado, foi a uma festa na vizinha cidade de Pirapó e encontrou sua chininha aos beijos e abraços com um gaiteiro, amigo seu, residente em Santo Cristo.

Olhou a cena, desaprovou com o pescoço e louco das patas, pensou em mutilar o concorrente e também dar um corretivo na guria, mas, ao lembrar-se da “Senhora Maria da Penha”, se conteve. Abichornado barbaridade, se botou no vinho até ficar borracho.

Quando passou a ressaca, começou a pensar como Julio Cesar: o que é mais significante o mármore do Senado ou a areia do Coliseu? Preferiu momentaneamente não namorar, pois, pressupôs que levaria outra guampa. Pensou: o amor tem se apresentado para mim como um potro mal domado. Parece que meu negócio é ser posteiro, gineteador ou capataz; cuidar de mangueiro, alambrados, gadarias, tropilhas, domas e castrações.

Continuou tocando nos bailesitos ou surungos da fronteira. Quase não ia ao litoral. Sua praia era o Rio Uruguai. Gostava de CTG, chimarrão, canha, apostas em carreiradas, e contar piadas. Ao entrar nos bolichos de campanha, todos se alegravam. Ao sair, costumava gritar “se precisarem de mim, indiada veia, meu nome é pronto, se abanquem comigo, tomemos um mate e me digam as tarefas, tchê”.

Por ser querido, seu amigo Benedetti o chamou pra ir aos cassinos de Puerto Madero, na Argentina e Punta Del Leste, no Uruguai. Ele riu e respondeu: compadre velho, teu convite é bem a preceito, mas, não sou pra tanto; falta-me plata pra este veraneio e além do mais, taura velho, um bagual, feito eu, faria feio nestes ambientes. Nasci pra ser campeiro, sou gaúcho tradicionalista e isto me basta.  O amigo insistiu: mas olha vivente, tu gostas de apostar nos rodeios, por que não tentar a sorte no Cassino? Sabe Deus...

Licurgo reconsiderou. Deu um assovio, chamou os cuscos ovelheiros, separou umas quantas, as vendeu ao estancieiro vizinho e se foi para os cassinos.

Resolveram que iriam apenas a Ponta Del Leste por ser mais perto. Com a ajuda do amigo foi à casa de câmbio, fez a conversão da moeda e ficou faceiro ao perceber que cada real valia mais de oito pesos. Vieram pra roleta; selecionaram as cores e valores das fichas, distribuindo-as em variados números finalizando as apostas. A roleta girou e enquanto Licurgo apertava os dedos, fazendo figa.

Ao ganhar as primeiras jogadas, ele gritava: mas que troço macanudo, trilegal homem velho, para cada pila apostado ganhei 35, tchê. Ria e falava alto uma barbaridade.

Não demorou uma policial apareceu e educadamente disse: Señor, comprenda; para evitar la perturbación de la orden, pido por favor que disminuya su nível de ruído, gracias. Senhor compreenda. Para evitar a perturbação da ordem, peço, por favor, que diminuas o teu nível de ruído, obrigado.

Ele quedou-se inerte por uns segundos e contrapôs: Mas bah! Estou de bico com esta brigadiana, tem americanos engravatados, no maior gritêdo aqui, e ela só a mim, vem pedir silêncio. A policial olhou de revesgueio, Benedetti pediu calma e tudo se acomodou.

Voltaram a jogar, mas, Benedetti começou a perder seguidamente, ao passo que Licurgo não perdia uma, alternando as apostas, colocando as fichas, ora na parte interna da mesa, ora na externa, às vezes em um só número, outras em dois, e, até na linha de quatro, que Licurgo chamava de encruzilhada, não importava onde plantasse as fichas, a colheita – como se diz em Direito - era coisa certa. A sequência de acertos a todos intrigava, deixando de mau humor os demais jogadores.

Foi assim por dias seguidos. Raras vezes perdia as apostas. Os pilas como a gauchada chamam, vinham tão certo quanto à conta de luz. Licurgo, cada vez mais faceiro, ficava tão barulhento, quanto, champanhe francês.

No terceiro dia, Benedetti parou de jogar; apenas curtia as garotas, as boas comidas e assistia aos shows. Estava chateado, perdera quase toda grana que levara e não mais jogou, preferindo ficar no hotel.

Os gerentes do cassino e do hotel informaram que Licurgo havia ultrapassado a capacidade de guarda gratuita de valores para hóspede e usuário das roletas, de modo que doravante seria preciso depositar os valores em bancos locais, ou convertê-los e transportar, ou pagar uma taxa altíssima para continuar usando os cofres do cassino.

Licurgo ligou para Benedetti e este sugeriu converter os pesos em reais e transportar normalmente, passando pela ponte de Uruguaiana. Depois de dar as informações, Benedetti avisa a Licurgo que vai retornar ao Brasil porque sua mãe não está bem.

_ Vou converter em reais e transportar em malas de rodinha, para o Rio Grande do Sul. Por muito tempo andei atrás de dinheiro, agora quero vê o dinheiro atrás de mim, bradou, sorrindo, Licurgo. Todos aplaudiram.

Licurgo mandou fechar a conta do apartamento, se dirigiu a direção e pediu algumas orientações. De pronto o gerente informa:

_ Senhor, temos três opções para transportar valores. Primeiro: por carro forte, com seguro e todo aparato de praxe; segundo: com seguro, carro e motorista por nós credenciados, mais seguranças; e, por último: carro e motorista credenciados, sem segurança e seguro, mas, permitindo sua presença durante o transporte.

_ Mas olha, diz Licurgo, fico com a última opção, até porque meu amigo já se foi e eu aproveito o carreto, tchê. Assim foi feito. Ao invés de malotes, oito grandes malas com rodinhas, lotadas de reais, foram rebocadas dos caixas fortes, para um furgão.

_ Senhor Licurgo, falou o gerente: este é nosso servidor Ramon Diaz, transportador há mais de 10 anos, inteiramente confiável. Bom retorno a Brasil e volte sempre que lhe convier. Hasta la vista.

Licurgo se despediu e alegremente durante a viagem declamava: Minha mala de garupa; Tem coisas da tradição

Charque para o carreteiro; Erva para chimarrão;

Um pala, lenço e bombacha; Um pacote de pinhão

E pra matar meus desejos; Vinhos, salames e queijos

Típicos do meu rincão. 

É melhor ser da Campanha que morar na Capital.

Tomar vinho, beber canha montar em potro bagual

No pingo dou um laçaço e me boto a trote largo

Pra comer um bom churrasco e sevar um mate amargo.

Chegaram à Ponte de Uruguaiana. Uma blitz dos Federais. Deram sinal para encostar, o que foi feito.

_ Documentos do carro, Habilitação, e identificação do passageiro. Quero saber: de onde vêm para onde vão, o motivo que os trouxeram aqui e por quanto tempo vão permanecer?

_ Mas homem velho - Licurgo articula - que desgraceira é esta. O auto é do Uruguai, o motorista também, e eu sou aqui da fronteira, moro bem ali à esquerda, nas Missões, em São Nicolau. Tu não respeitas o PUBA? Somos parceiros, tchê. O que mais te falta brigadiano?

_ Senhor, brigadiano é policial militar do Rio Grande do Sul, eu sou da Polícia Federal e exijo que te acalmes do contrário terei de prender-te por desacato. Sobre o PUBA, eu desconheço esta figura ou nomenclatura, imagino que estejas te referindo ao MERCOSUL, correto?

_ Ah sim, federal. É que em São Nicolau, chamamos PUBA o acordo entre Paraguai, Uruguai, Brasil e Argentina. Foi mal, peço sinceras escusas.

_ Aceito as desculpas, mas, está faltando um país, Senhor?

_ Não me diga, é a porqueira da Venezuela, federal; até larguei, pois ela anda pisando na democracia e por isso foi suspensa pelos demais países do MERCOSUL. 

_ Bravo, senhor. Estão liberados. Boa viagem. Sorrindo, ah, motorista, vamos assoprar o bafômetro? Ramon respondeu: sem problemas senhor, então Licurgo esbravejou: mãe de Deus, tá de bico com a gente, agente federal? Estamos atrazaditos, autoridade. O policial retrucou: alapucha, falei, pra ti zoar Licurgo, eu também moro em São Nicolau. Licurgo riu e largou um sapucai:  Aiaiaiuiahahá, e comentou: ainda bem Ramon, lembra que na saída, a pedido meu, bebestes uns tragos da minha canha?

Pois bem, tudo certo ou nem tanto, na blitz da ponte, e, 300 metros adiante, ao desacelerar numa lomba, um homem encapuzado aponta uma arma para o motorista que freia incontinenti.

_ Deixe as chaves no contato; apague os faróis, esvaziem os bolsos, joguem as carteiras em cima dos bancos, e saiam com as mãos na cabeça. Ramon pediu calma, e, ao desligar os faróis, acionou o dispositivo de segurança que fará o carro desligar totalmente em 5 minutos ao mesmo tempo em que deu dois toques nas luzes intermitentes o que chamou a imediata atenção dos federais que estavam nas imediações.

Nem bem o bandido acelerou, os homens da lei o enquadraram. Era Benedetti, mui amigo de Licurgo. Sabedor do trajeto e horário, o marginal preparou a emboscada, para se apossar do dinheiro. Aliás, iria fugir com o furgão e a grana, visto que era vizinho da vítima.

Prezo e algemado, foi feito o Boletim de Ocorrência e aberto o inquérito, que após o relatório, foi enviado ao Ministério Público o qual ofereceu denúncia; o Juiz a recebeu e citou o réu, para a resposta a acusação; a seguir marcou audiência na qual instruiu o processo, ouvindo testemunhas, acusação e defesa, e, após as alegações finais, condenou o réu na forma da lei, ou seja, artigo 157 do Código Penal.

 Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

 Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

 III - se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância.

Agora Licurgo era um xiru endinheirado. Se as 12 malas, de certo político, encontradas em Salvador, continham 51 milhões de reais, suas 8 - bem maiores que aquelas - portavam 55 milhões, até porque as cédulas novíssimas ocupam menos espaço.

Bem, voltamos a falar de amor. Mariana estava fazendo doutorado em Santa Maria e foi sobressaltada pela notícia de que seu pai estava sofrendo de um câncer com um alto grau de complicação.

Em pouco tempo gastaram muito com os mais renomados especialistas do Rio Grande do Sul e do Brasil sem conseguir debelar a patologia. Licurgo tomou conhecimento que ela iria interromper o doutorado para cuidar do pai e também porque não disponha mais de recurso para custear as despesas com a faculdade.

Então ele se reuniu com os Pró-Reitores, coordenadores e orientadores da Faculdade. Verificou o total das despesas necessárias para Mariana concluir o doutorado e fez uma proposta: arrumar uma instituição patrocinadora interessada em quitar esses débitos e contratar a Mariana, após a titulação, dando-lhe oportunidade de com os ganhos ressarcir o patrocinador.

Licurgo solicitou a gentileza de ser chamado na titulação para parabenizar os doutorandos em nome da suposta instituição. Tudo acertado, ele pede que notifiquem a Mariana para retornar à faculdade, pois a patrocinadora pagaria também uma enfermeira em tempo integral para cuidar do seu pai.

De volta à faculdade, Mariana brilhou em sua tese, e apesar de não conhecer pessoalmente seu patrocinador, solicitou que a faculdade o convidasse, como sendo imprescindível sua presença no dia da formatura.

Licurgo fez um levantamento sobre médicos nos Estados Unidos, especialistas em oncologia, principalmente no tipo de câncer que Antonello padecia. Descobriu o Doutor Eduard Jonson Mcnamara o qual veio ao Brasil e operou com sucesso o pai de Mariana.

Quando perguntaram ao médico por que viera, e quanto cobraria, ele disse que aguardassem as respostas brevemente e que a princípio estava em experimentação do seu método para o combate ao câncer, e por isso, não havia despesas nesta fase, apenas agradecimentos à família, por ter permitido aplicar seus testes em Antonello.

Chegou o grande dia. Mariana se dirige à mesa, e, ao tempo que enumeram as habilidades da doutora a convidam para falar sobre sua patrocinadora e empregadora: Licurgo e Licurgo S/A.

Ao chamar para a entrega do Título, Licurgo aparece com um buquê de rosas e um contrato de trabalho para a doutora.  Todos aplaudiram inclusive o pai que na véspera recebera em caráter confidencial um envelope com a quitação da cirurgia no valor de 400 mil reais pagos por Licurgo e Licurgo S/A.

Antonello, Mariana e Licurgo se abraçaram; é claro, todos riam e choravam a um só tempo. Mariana falou baixinho: trouxestes as alianças? Licurgo afirmou que sim. Ela se voltou em direção ao pai e consultou se ele estava de acordo;

_ sim; respondeu de pronto, mas veja primeiro se ele me perdoa, e, depois, se aceita casar-se contigo. Ela trovejou: CAPAZ, (expressão de afirmação nos pagos do Sul), a seguir perquiriu ao Licurgo: tu perdoas o pai, e, aceitas casar comigo, tchê? Licurgo a beijou; abraçou Antonello e respondeu: perdoo e aceito sob a condição de meu sogro ser o churrasqueiro na festa do nosso casamento. Negócio fechado, se atracaram na risada, e se botaram no microfone para anunciar o noivado.

E a Olga Hack Schultz? Onde anda esta china, Licurgo? Mazaaaaá indiada, isto, é me pedir demais. Até larguei; deve estar em algum chinaredo; perdi o interesse, nem vou prospectar. A Mariana me basta. O amor aqui, se era com, passou a ser, SEM ASPAS.

Buenas, tchê – Dr. Francisco Mello –
Criminalista.