A GAROTA DO BAIRRO
A noite resplandecia num manto estrelado de luzes que agasalhavam a alegria na pequena cidade interiorana. Era véspera de Natal. O As ruas centrais regurgitavam de gente. O povo todo do bairro, onde passei os melhores dias da minha infância e adolescência, saíra cedo para as compras.
Festas de Natal, Ano Novo, Carnaval eram esperadas com ansiedade naquela cidadezinha acolhedora encravada num vale entre cadeias de montanhas. Na verdade, eram esperadas em todas as cidades naquele tempo. Até mesmo nas grandes metrópoles. O comercio ficava aberto enquanto houvesse dinheiro para gastar. Todos iam para o centro da cidade que virava um turbilhão de povaréu em andanças febris de loja em loja.
Entretanto, aquela azáfama nas vias públicas, os cânticos próprios da época que saiam das suntuosas lojas enfeitadas, não me diziam muita coisa. Eu era, sem dúvida, um menino arredio a festas. Preferia o aconchego da minha casa simples que ficava na esquina de um cruzamento num dos bairros mais tranquilos da cidade.
Depois de uma manhã bem aproveitada no campinho de futebol do bairro - na verdade um pedaço de chão batido com raríssimos tufos de grama- mais tarde transformado numa destas praças sem qualquer utilidade prática, almocei.
Dormi e acordei naquele 24 de dezembro por volta das 19,30 hs. Minha rua estava praticamente deserta.
A casa estava vazia. Uma casa imensa com 12 cômodos, entre eles, uma enorme cozinha com um vetusto fogão a lenha e um quintal onde predominavam as parreiras e as mangueiras. Um pomar, na verdade, onde de tudo se colhia um pouco. Enquanto tomava um café de verdade, reforçado por um naco de pão caseiro, observava o quintal desnudado à minha frente e que fora sempre, para mim, um lugar onde meditava sem saber que o fazia...
Tomei um banho e sai. Fui buscar um ar para sair daquele calor estafante que era insuportável. Eu gostava daquele silencio tranquilo vez por outra interrompido pelo canto de alguma cigarra palradeira.
A rua era calçada, em parte, com enormes pedras nem sempre devidamente colocadas, o que lhe emprestava um ar de coisa mais antiga do que realmente era. As árvores plantadas rente as calçadas coloriam de verde escuro a paisagem realçada pela claridade da lua que derramava sua prataria sobre aquele mundinho de felicidade desconhecida. Eu gostava de caminhar por ali, respirando aquele ar noturno, aspirando o perfume que evolava dos jardins que engalanavam as casas. Não havia carros subindo e descendo. Não havia motos. Gostava de filosofar sobre a vida caminhando pela comprida rua. Pensava muito em coisas sequer imagináveis para meus amigos e até mesmo para meus pais. De onde a gente vinha, porque a gente nascia e morria, para onde a gente ia. Coisas assim, do gênero, que naqueles tempos, se contadas, significavam prenúncio de “loucura”.
Ia pensando nestas coisas quando passei pela casa da Carmen Lucia. Menina bonita, de olhos castanhos muito vivos, cabelos longos, sedosos, que caiam sobre os ombros e espalhavam-se por suas costas como a proteger aquela pele clara e macia de mãos impuras e atrevidas. Calada, estudiosa, arredia, e extremamente cobiçada pelos garotos do bairro. Poucos se atreveram a chegar perto dela no antigo “footing” que se fazia na praça da cidade nos domingos.
Ela estava sentada na soleira da porta de sua casa, sozinha. Nunca conheci aquela casa por dentro. Conhecia apenas o jardim maravilhosamente bem cuidado, onde as rosas em suas tonalidades variadas davam um aspecto de eterna primavera àquela residência que me soava acolhedora.
É verdade que trocara alguns olhares com ela no colégio. Mas não passara disto e conversávamos apenas de “oi” e uma troca de sorrisos. Eu morava no início da rua e ela no final. Estava com uma saia xadrez, plissada, em azul e vermelho e uma blusa branca com botões azuis que lhe emprestava uma beleza singela, mas deslumbrante. Um encanto de menina...
Passei e disse um tudo bem ou qualquer coisa no gênero, um oi talvez. Sei lá. Devo ter dito o que se dizia na época. Tenho certeza de que não foi um “fala ai mana” ou” E aí? Tudo em cima?”. Acho até que foi um boa noite. Ela respondeu com um sorriso e eu continuei na minha caminhada pensativo, olhando o céu estrelado, imaginando como seria a vida dali a quarenta anos. Fui até o final da rua e voltei.
Ela estava no mesmo lugar. Do mesmo jeito e parecia que olhava o céu também. Achei que ela devia pensar muito além do seu tempo. Ia passando quando ela me perguntou num repente, com ar de brincadeira, sem que eu esperasse:- Você não gosta do Papai Noel
Eu sorri e respondi - Dele sim, da festa dele não. Ela riu e disse que também pensava como eu. Começamos a conversar ali mesmo. Sozinhos, o que era coisa rara naqueles tempos. Seus pais haviam saído com seu irmão mais novo, dissera, e ela ficara porque não gostava daquele burburinho do centro da cidade.
Falamos sobre Natal, sobre festas, falamos sobre estudos, sobre futuros. Carreiras que pensávamos seguir. Éramos duas pessoas que mal entravam na adolescência, mas cujos pensamentos e ideais pareciam de adultos.
Conversamos sobre outras coisas. Sobre meninos, sobre meninas, sobre homens e mulheres. Sobre namoro. Não sobre sexo... Ela não suportava aqueles garotos chatos que estavam sempre na cola dela e eu não me incluía neles, porque era demasiadamente tímido para fazer como os outros.
Falou de poesia. Eu adorava poesia. Tínhamos a mesma predileção por Castro Alves, Fagundes Varela, Gonçalves Dias. Ela sabia alguns versos de cor eu sabia outros.
Num repente sob o manto estrelado onde, seguramente, uma Luz havia nele viajado há dois mil anos para iniciar a prática de troca de presentes entre as pessoas que se querem bem, eu recebi o mais lindo presente de Natal de toda a minha vida. O primeiro beijo da menina mais cobiçada do bairro Independência...
Nelson de Medeiros