Aos dois meses de vida me tiraram do âmago de minha mãe querida.
Era preciso desmamar para minha protetora continuar a servir seus senhores nos labores.
O fubá não tinha o mesmo deleite do leite, mas precisava me alimentar para crescer e bem cedo encarar os duros trabalhos diários.
Sou filho de cesária!
Não! Não é este o nome de minha mãe, ela se chama Maria, apenas mais uma Maria, com meia dúzia de bocas vazias para alimentar.
Cesária é a forma bruta com que me tiraram do útero, da madre; para mamãe não teve resguardo.
Tudo foi muito precoce, tive que aprender andar rápido para poupar as costas de uma mãe sofrida, toda dolorida pelas cargas da vida.
Não estou dizendo que fomos uma carga para mamãe estou me referindo ao trabalho pesado colocado sobre seus ombros nas 12 horas diárias de duro labor pelas migalhas...
Tambores... Capina... O chão polido do casarão do coronel Mercina...
E mais tarde todas as noites suportar sobre si o asco corpo do coronel, homem violento e Cruel que não admite não como resposta.
Ter filhos naqueles dias era uma ótima ameaça aos servos insubordinados.
Maria dava graças a Deus de não ter tido nenhuma menina e vê-la sofrer nas mãos de homens como seu Mercina.
Não sabia do que se escondia...
Aos cinco anos me chamavam de burrico troçando-me eu sorria pensando ser um elogio e mais um tambor de leite pesado levantava, voltando com ele vazio.
E lá aí aquela escadinha de crianças numa andança.
O salário? Nem o pão nem o sal, mas as mangas perto do curral e um sopão de verduras que mamãe mesmo cultivava às escuras.
No cocho dos porcos especiarias especiosas que nos enchia a boca d\'água e muitas vezes não resistiamos aquele novo aperitivo, convidativo.
Meu pai? Vive por aí ébrio, trocando os passos, afogando as dores do fracasso.
Quer dizer: já não sei quem é meu pai. Com tantas torturas e violência sexual, mamãe se perdeu nesse mal.
Nossas brincadeiras de criança se resumia no trabalho de quem mais colhia tomates e enchia maior número de caixas vazias.
Ou de quem juntava sacos e sacos de esterco num pasto vasto coberto de serpentes.
Os banhos de bebê se dava um ali mesmo no eito, as margens de um córrego estreito, onde era despejado o esgoto da casa do coronel.
Banhar-se acima da propriedade: uma incredulidade. Nem pensar! O último que assim o fez, virou a bola da vez, sofrendo os castigos por poluir as águas que desciam as portas de seu Mercina e hoje habita em baixo da campina.
Desde cedo aprendemos pelo medo a respeitar os limites, sem doidices.
Aos 12 anos vivi o terror ao crepto: amarrado num cepo o filho do patrão investia para abusar da minha candidez.
Por sorte, meu irmão mais forte, o primogênito de mamãe, estava sempre atento e me vendo opresso... tomou na mão uma grande pedra, que no fato inato dos homens: instintivamente sem pudor abriu a cabeça do abusador.
O opressor já estava morto e meu irmão de 18 não parava de bater. Foi assim que pude ver que ele também sofrera com medo daquele mesmo sujeito, como todos os outros meus irmãos nas mãos do futuro coronel que haveria de exceder a violência e abuso do pai cruel.
Não demorou e os capangas de seu Mercina pararam meu irmão com tiro pelas costas que explodiu sua cabeça.
E a vítima e violador estavam sem vida a jorrar sangue na avenida de terra batida.
Mesmo sabendo que haveria de morrer eu pude ver nos olhos arregalados de meu irmão: o arrebol do pôr do sol, e em seus gritos não mais de gemidos, os golpes com sentimento de justiça no cumprimento do suplício.
Meu anjo da guarda era meu irmão, mataram ele sem compaixão, como um criminoso e vilão.
O violentado de Infância roubada foi julgado à morte sem o direito de defesa, com vileza para nossa tristeza.
Não teve sorte e a sentença foi a morte.
Mamãe ouviu os estúpidos da espingarda e veio correndo desorientada, desmaiou ao ver seu primogênito morto ao relento.
Acordou dias depois sem movimento nem fala não pode ver seu filho ser enterrado na vala.
A polícia foi chamada e consolava o coronel, os capangas elogiados, e os seis irmãos marginalizados.
Não podemos enterrar nosso anjo irmão na terras da opressão.
Caminhamos dois dias com seu corpo além das fronteiras das terras do coronel, com uma dor amarga como Fel.
Abrimos uma vala na vertical enterrando o anjo em pé enrolado no lençol.
empilhamos a pedra que ele com volição segurou com outras cinco que encontramos onde o sepultamos.
Como emblema de justiça e dilema de união de irmãos que se seguram pela mão.
Numa cruz cravada escrevemos:\" aqui jaz um anjo herói audaz\", que não se curva mesmo nas dores diante dos opressores.
Não se vergou ao poder e opressão essa era sua missão e até hoje permanece em pé.
De lá partirmos carregando mamãe para cidade grande, como se fossemos uma falange.
Na favela pelas vielas nos instalamos, pois não havia outra opção senão na periferia.
Todos nós fomos acolhidos na comunidade com igualdade, nunca haviamos sido tratado com tanto zelo.
Logo eu o mais novo com tanto apelo me tornei o gerente da boca e cada um de meus irmãos desempenhava um papel muitas vezes cruel no submundo do crime.
Revezavamos em cuidar da mamãe. Agora não faltava dinheiro nem desvelo.
Desde que fomos humilhados num hospital para milionários, que recusou atender mamãe. Nos posturamos no crime para ajudar os aflitos e oprimidos.
Meu dinheiro? Não venha depreciar! Cargas e suprimentos usurpavamos para alimentar, uma multidão que o governo há muito se esqueceu... Lá por volta de 13 de Maio de 1888.
Mais de um século se passou, nada mudou... foi o que nos restou. Hoje abusador morre com muita dor.
Já não tenho 12 acabo de completar 25 sobre uma cadeira de rodas com detalhes em zinco... pelas trocas de tiros com a polícia aliada da milícia.
que tentavam impor e tomar os pontos de maior valor. Na comunidade que bandido não tem idade mais preza pela igualdade.
Sabe... Aprendemos com meu falecido irmão a não ceder as pressões dos poderosos e coronéis cruéis.
Mamãe morreu, com dignidade Deus recolheu.
Cerca de cinco mil pessoas vieram corteja-la. Naquele dia em respeito a Dona Maria não houve homicídios, assaltos, tráfico e gritaria em toda a comunidade, pelo respeito e a dor no peito.
Os comércios fecharam em luto. Não houve tumulto!
Favela! Viela! Comunidade! Podem chamar do que quiserem... eu te chamo de casa de família. Onde o outro dá o pouco que tem ao que nada possui.
Não venha me chamar de ladrão pois você vive no mundo de corrupção sem nunca ter lhe faltado um pão.
Se você não é sujeito nem objeto fica fácil julgar e condenar ...
Hoje não sou mais chamado de burrico, sou respeitado! E desse apelido apenas rico.
Ligo a TV e vejo quanta violência ha no mundo, como a negligência, corrupção, as diferenças sociais e violência velada tem gerado uma violência não velada.
Ha mortes, sangue, drogas e sofrimento por todo lado... onde negros pobres e favelados serão sempre na opinião distorcida e preconceituosa a causa da violência e flagelo.
Para estes fique o exemplo do anjo, que não se curvou diante da opressão, e que um dia não seja preciso usar a violência para ser livre e mostrar as igualdades e direitos distorcidos.
12/12/2021